Galileu, filosofia e ciência – Parte Ia

Eduardo Kickhöfel

Um ponto de partida

Em uma reunião no ano passado com os professores da pós-graduação do curso de filosofia da Unifesp, na qual ensino história da filosofia ada Renascença, os dois coordenadores da área de filosofia da CAPES presentes, os professores Danilo Marcondes de Souza Filho e João Carlos Salles Pires da Silva, disseram que a CAPES sugere que os programas de pós-graduação no país sejam interdisciplinares. Não existe obrigação para isso, eles deixaram claro, mas sim estímulo. Logo a seguir, eles mencionaram que a área de pós-graduação mais fechada do Brasil é a filosofia. Minha experiência acadêmica entre as chamadas Humanidades, que já dura quase vinte anos, concorda com isso. Eis a situação da filosofia em nosso país, em uma época excepcionalmente rica em termos de conhecimento e acesso ao conhecimento. Já deixo claro que não sou uma daquelas pessoas que vive lamentando o mundo contemporâneo.

As causas disso talvez sejam diversas. Ouso pensar que ainda existe em nosso meio a ideia de que a filosofia é a disciplina que fundamenta as outras, sendo ainda uma espécie de “rainha das ciências” como foi na Idade Média e no Renascimento. O fato que os seis cursos do campus em que sou professor têm duas disciplinas obrigatórias de filosofia aponta para isso. Aliás, parece-me estranho que a busca de fundamentos ocorra em meio ao desconhecimento das próprias disciplinas.

Neste e nos próximos posts, minhas considerações visam pensar a distinção entre filosofia e ciência, em que nosso meio frequentemente assume tons de oposição e hostilidade. Após, sugerirei aproximações. Para isso, farei um esboço de questões de história da filosofia para definir filosofia e ciência em linhas gerais.

Aristóteles

O corpus aristotélico aponta para uma ampla gama de matérias, e a divisão das ciências aparece em diversos textos. No primeiro capítulo do livro sexto da Metafísica, Aristóteles divide as ciências (epistemai) em teórica (theoretikê), prática (praktikê) e produtiva (poietikê). Elas possuem conhecimentos de princípios e causas e a possibilidade de serem ensinadas, mas cada uma tem campos delimitados. A ciência teórica inclui a filosofia primeira, a matemática e a física, ciências buscadas “segundo si mesmas”. A ciência prática inclui a ética e a política, ciências buscadas para a condução da vida humana. A ciência produtiva inclui a medicina e a retórica, entre outras, ou seja, as artes (technai) buscadas por seus resultados relacionados às necessidades e aos divertimentos.

Entretanto, a divisão é efetivamente bipartida. No primeiro livro da Metafísica, Aristóteles diz que, se uma pessoa cura Sócrates e Cálias, essa pessoa tem experiência (empiria), mas, se ela cura Sócrates e Cálias e associa isso a noções válidas para todas as pessoas que padecem semelhantemente a Sócrates e Cálias, aí ela tem uma arte (technê) e pode, caso queira, curar Sócrates, Cálias ou qualquer outro homem em condição semelhante. Em outras palavras, arte é conhecimento de noções universais relacionado a produzir e buscado por seus resultados. A ciência (epistêmê), que Aristóteles não detalha nesse livro, é conhecimento de noções universais buscadas “segundo si mesmas”. A divisão bipartida também está sugerida no segundo livro da Metafísica, no qual Aristóteles é claro ao distinguir dois tipos de ciência: “Também é correto denominar a filosofia (philosophian) como ‘ciência da verdade’ (epistêmên tês aletheias). O fim da ciência teórica (theoretikês) é a verdade, e, da ciência prática (praktikês), é a ação. De fato, se os que sabem agir também investigam de que modo as coisas se dão, estudam-nas não como eternas, mas em relação a algo e agora.” Considerando que as produções também ocorrem “em relação a algo e agora”, pode-se substituir “ciência prática” por “ciência produtiva” nesse texto sem perder sua ideia central. Por fim, no sexto livro da Ética a Nicômaco, Aristóteles também sugere a divisão bipartida ao dividir a razão entre científica e deliberativa, a primeira voltada aos princípios invariáveis, a segunda às coisas que admitem mudança. Nesse livro, de fato, estão as duas definições “clássicas” de arte e ciência: arte (têchne) é “disposição de produzir com reta razão” e ciência (epistêmê) é “disposição demonstrativa”, que está explicada nos Segundos analíticos. Voltando ao início do livro sexto, pode-se concluir que a palavra “ciência” (“epistêmê”) tem dois sentidos básicos: o sentido estrito de ciência demonstrativa, ou seja a ciência teórica, e o sentido amplo de qualquer conhecimento sistematizado por princípios e causas, como no caso das ciências práticas e produtivas, ou seja, as artes. Em suma, havia uma distinção essencial entre a ciência teórica e as ciências prática e produtiva, ou simplesmente entre ciência e arte. Os termos são escorregadios, mas as definições são claras.

No campo da cosmologia, Aristóteles aceitava as noções de Empédocles a respeito de que existiam quatro elementos – terra, água, ar e fogo – que formavam a Terra, que estava imóvel no centro do universo e abaixo da esfera da Lua, o corpo celestial mais próximo. Assim, a Terra formava o mundo sublunar, no qual os elementos se misturavam e compunham todas as coisas, ou seja, a Terra era o mundo da geração e corrupção. Acima da esfera da Lua, estavam os planetas compostos por uma quinta essência incorruptível: Mercúrio, Vênus, Sol, Marte, Júpiter e Saturno. Além disso, estavam a esfera das estrelas fixas, que formavam a abobada celeste, e o primeiro motor imóvel, que colocava o cosmos em movimento. Nesse cosmos, abaixo da esfera da Lua os quatro elementos moviam-se verticalmente, dependendo de seu peso; a terra e a água tendiam por natureza ao centro da Terra, o ar e o fogo tendiam por natureza para cima. Os corpos celestes por natureza moviam-se em círculos perfeitos em torno na Terra em velocidade uniforme. Nota-se uma separação essencial entre o mundo sublunar e o mundo supralunar, e físicas diferentes existiam para explicar cada um. Além disso, havia uma separação entre a física e a astronomia. O físico ou filosofo natural se ocupava das essências dos corpos celestes, e ao astrônomo cabia apenas fazer cálculos em vista de predizer as posições dos planetas. A precisão matemática dos movimentos celestes não cabia no mundo da geração e corrupção, de modo que a física era qualitativa. Astrônomos antigos enfatizaram isso, como Geminus de Rodes: “É assunto da investigação física considerar a essência do céu e das estrelas, sua força e qualidade, sua geração e sua destruição, e até demonstrar os fatos sobre seu tamanho, forma e ordem. A astronomia, por outro lado, não pretende tratar desse gênero de coisas, mas demonstra a ordem dos corpos celestes por considerações baseadas na concepção de que o céu é um verdadeiro cosmos, e também trata das formas, tamanhos e distâncias da Terra, Sol e Lua, e dos eclipses e conjunções estelares, assim como da qualidade e extensão de seus movimentos.”

Entretanto, observava-se que certos planetas apresentavam movimentos retrógrados. A cada dois anos, por exemplo, ao longo de dois meses Marte realizava uma espécie de laço contra o fundo das estrelas fixas. Então, Ptolomeu, astrônomo de Alexandria, elaborou uma sofisticada série de modelos matemáticos em vista de “salvar as aparências”. Em poucas palavras, cada planeta se movimentaria sobre um epiciclo que, por sua vez, descreveria um círculo em torno de um ponto ligeiramente deslocado em relação ao centro da Terra. Além disso, a velocidade do epiciclo era relativa ao equante, outro artifício matemático localizado em oposição à posição da Terra. Bastava ajustar as velocidades relativas para se obter as predições requeridas para fins astrológicos. Entretanto, isso não correspondia à realidade dos céus, que era dita pelos físicos.

Renascimento

Aparentemente, Aristóteles não deu muita importância às classificações das ciências, mas os filósofos medievais e renascentistas ocuparam-se disso diversas vezes. A história em questão é vasta e complexa, mas pode ser resumida a um conjunto de variações sobre temas aristotélicos de origem platônica.

Como “epistêmê” em Aristóteles, a palavra “philosophia” no Renascimento tinha dois sentidos básicos: o sentido estrito de filosofia teórica (a metafísica, a matemática e a física); e o sentido amplo de qualquer saber organizado por princípios e causas, ou seja, a filosofia prática (ética e política, por exemplo) e a filosofia produtiva (as artes em geral). Em outras palavras, existia uma divisão tripartida da filosofia em teórica, prática e produtiva, mas que, tal qual em Aristóteles, era efetivamente bipartida: existiam saberes demonstrativos das noções eternas e necessárias, buscados segundo si mesmos; e existiam saberes ativos e produtivos para ações e produções no mundo da geração e corrupção, buscados por seus resultados. Nesse sentido, enfatizo que “ciência” e “filosofia” são palavras praticamente sinônimas até o Renascimento.

No Panepistemon (O omnisciente), escrito por volta de 1490, Agnolo Poliziano divide a filosofia (philosophia) em especulativa (spectativa), ou seja, a parte teórica formada pela filosofia natural, pela metafísica e pelas disciplinas matemáticas do Quadrivium; ativa (actualis), a parte formada pela ética, pelas economia e a política; e racional, formada pelas disciplinas do Trivium, e pelas disciplinas da dialética retórica, poesia e história. Gregorius Reisch, em sua obra Margarita philosophica (Pérola filosófica), publicada em 1503 e já comentada neste blog, divide a filosofia em teórica (theorica) e prática (practica). Na parte teórica, ele fala da filosofia real (“Realis q[uae] rursus diuiditur in”; “que de novo é dividida em”) e racional (“R[ati]onal[is] cuius p[ar]tes s[un]t”). Dentro da primeira estão as três ciências especulativas da tradição aristotélica (a metafísica, as disciplinas matemáticas do Quadrivium e a filosofia natural). Dentro da segunda, as disciplinas do Trivum. A parte prática é dividida em ativa (activa) e produtiva (factiva), e segue as linhas gerais da tradição aristotélica esboçada acima. Como Poliziano, Reisch aproxima a classificação aristotélica e as disciplinas do Quadrivium e do Trivium. Por fim, Franciscus Toletus, em seus Commentaria una cum quaestionibus in VIII libros De physica auscultatione (Comentários com questões sobre a física de Aristóteles em oito livros), publicado em 1574, segue o primeiro capítulo do livro sexto da Metafísica. Toletus divide a filosofia (philosophia) em três principais partes: especulativa (speculativa), prática (practica) e produtiva (factiva). Destas, a primeira era subdividida em metafísica, matemática e física, ocupando-se sobretudo de questões teóricas; a filosofia prática era relacionada às ações e à condução da vida humana, e entre suas partes estavam a ética e a política; e a filosofia produtiva era dividida nas artes que eram necessárias à vida humana, aquelas que eram úteis e aquelas que proporcionavam divertimentos.

Aristóteles continuava central nos currículos universitários, e a tarefa do filósofo era ensiná-lo e comentá-lo. Naquele contexto, a cosmologia seguia as linhas gerais de seu tratado De caelo (Do céu), agora devidamente cristianizada, como mostra a imagem abaixo, e sua física, não obstante as críticas a ela existentes desde os antigos, ainda formava a base das explicações naturais. A separação entre física e matemática também continuava, mas desde pensadores árabes tentava-se solucionar esse impasse. Em Pádua, um grupo de filósofos, conhecidos como averroístas, negavam a existência de hipóteses matemáticas que não concordavam com a física, ou seja, declaravam que o sistema de Ptolomeu era falso. No final do século XV, Alessandro Achillini publicou o De orbibus coeli (Sobre os orbes do céu), no qual diz: “Os movimentos que Ptolomeu supõe fundamentam-se sobre duas hipóteses, o excêntrico e o epiciclo, que não concordam com a física; essas hipóteses são ambas falsas.” E ainda: “Na realidade, a astronomia atual não existe; ela convém apenas ao cálculo das efemérides.”

Entretanto, o retorno de seus comentadores gregos e textos de outros filósofos antigos, sobretudo platônicos, epicuristas e estoicos no século XV, faziam de Aristóteles não mais o Filósofo, mas um filósofo entre outros. Ele podia ser ainda o maior entre os antigos, mas agora não representava mais um pensamento imutável e alheio a qualquer questionamento. Os “gramáticos”, tão desprezados pela historiografia até a metade do século passado, foram responsáveis por isso. Baseados sobre estudos do latim antigo, os humanistas e filósofos enfrentavam a dificuldade de ler os antigos, de traduzi-los e de colocá-los em seu tempo. Aquela cultura que recebera e retraduzira Aristóteles, e em parte tornara-se dogmática, recebia outros textos e, sobretudo, ampliava o campo da experiência ao descobrir um novo hemisfério e suas novas sociedades, faunas e floras desconhecidas. Uma certa douta ignorância aparecia, e em poucas décadas o ceticismo voltaria à cultura letrada europeia.

A partir de um certo ponto, colocar em questão Aristóteles não era mais tarefa impossível, embora fosse difícil, como Galileu saberia ao longo do chamado “período polêmico”, que se estendeu do ano de 1610, quando publicou o Mensageiro das estrelas, ao ano de 1633, ano de sua condenação pelo Santo Ofício.

Giovanni di Paolo. Criação do mundo e expulsão do Paraíso. Têmpera e ouro sobre madeira, 46.4 x 52.1 cm, 1445. The Metropolitan Museum of Art, Nova York.

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