Notas de estudo

Filippino Lippi. Estudos de figuras, parte e uma página do “Libro de’ Disegni” de Giorgio Vasari. Ponta de metal e pigmento branco sobre papel preparado em ocre, c. 1493-95. National Gallery of Art, Washington.

Notas de estudo

Eduardo Kickhöfel

Introdução

Eis mais um post após outra longa parada, mais duas longas viagens italianas, estudos em bibliotecas antigas e muitas coisas mais. Publico a seguir um texto que esbocei no começo do ano passado na Itália, e terminei em São Paulo para um curso chamado Ars proprium humanitatis. Nele, elaboro uma perspectiva ampla a partir de disciplinas de época que permite utilizar e aproximar disciplinas contemporâneas como história da arte, história da ciência e história da filosofia, para então colocá-las em segundo plano e finalmente descartá-las. Eis a ideia básica de minhas pesquisas históricas. Tenho uma versão em inglês revisada e ampliada, parte de um projeto em elaboração, mas publico aqui esse texto como circula entre meus alunos, excetuando pequenas correções e traduções de fontes de época, e também links específicos. Aqui, faço duas observações a respeito de história da arte, disciplina em que tenho mestrado e que aprecio bastante.

Historiadores da arte não estudam apenas questões formais, como escrevo abaixo. Neste ano, em uma de minhas visitas a Santa Maria in Aracoeli em Roma, ouvi um historiador da arte falar a respeito dos afrescos de Bernardino Pinturicchio na Cappella Bufalini. Ele descreveu noções teológicas presentes no ciclo da vida do franciscano Bernardino da Siena. Entretanto, questões formais estavam implícitas nas palavras dele, como sugerem as origens e o nome da disciplina que ele praticava, e também as sugestões a obras anteriores e posteriores de que ele falou. Por mais que falem de questões que não sejam formais, historiadores da arte interpretam obras de arte, noção elaborada a partir de meados do século XVIII. Certo, eles podem ver obras de modos que pessoas dos séculos XV e XVI não viam, discernindo estilos, escolas e padrões de dispersão de motivos ao longo daqueles séculos, e assim organizar a Sainsbury Wing da National Gallery de Londres. Entretanto, talvez eles percam informações de época demais ao fazer história de obras de arte e, ao usar conceitos posteriores, veem obras de modo anacrônico.

Isto posto, parece-me plausível pensar que já no século XVI existiam noções que permitiam dispor obras segundo características formais e históricas, como sugerem fólios existentes do livro de desenhos de Giorgio Vasari, do qual se mostra um detalhe acima (que vem da National Gallery of Art, que também tem outros exemplos), e suas Le vite dei più eccellenti pittori, scultori e architettori (ambas edições das Vite estão disponíveis em diversas páginas, e sugiro que se consulte as edições da Fondazione Memofonte). Entretanto, tendo a pensar que essas noções eram ainda muito incipientes, e funções religiosas e cívicas de obras como pinturas e esculturas eram mais importantes. Nesse sentido, a noção de artista também começa a ser formada nessa época, embora de modo também incipiente.

Partes desse texto estão desenvolvidas em um artigo recente chamado “Framework para o Renascimento”, que hoje me parece apenas mais outro esboço, e quem tiver interesse por tipo de estudo, veja a resenha “Leonardo da Vinci – algumas reflexões e dois livros”, que critica a conhecida biografia de Leonardo escrita por Walter Isaacson.

Notas de estudo

[o problema]

Viso fazer história da filosofia. Neste texto, foco sobre Renascimento, e as observações a seguir talvez valham para quem estuda fontes até aproximadamente meados do século XVIII, época de formação de conceitos e questões que estão na base de disciplinas formadas no século XIX hoje utilizadas. Começo este texto escrevendo a respeito de problemas a superar.

Historiadores da arte usam conceitos e questões formulados da segunda metade do século XIX em diante para descrever, classificar e entender obras de arte, ou seja, obras apreciadas principalmente por suas características estético-formais, não por suas funções ou utilidades imediatas. Para eles, como já para os românticos, arte significa obra de arte, não “um hábito intelectivo com verdadeira razão”, como Benedetto Varchi escreveu em 1549, e talvez pouco se importem se um crucifixo renascentista já foi parte de um aparato litúrgico. Historiadores da arte escrevem história de obras de arte como definidas acima, independentemente de tais e tais obras terem sido feitas como obras de arte. Funciona? Sim, mas de modo um tanto torto. Por exemplo, a Sainsbury Wing da National Gallery de Londres, que exibe a coleção renascentista da galeria, está organizada em torno de conceitos e questões que não existiam no Renascimento. Imagine-se um homem do século XV lá vendo obras religiosas dispostas sem relação direta com práticas litúrgicas, em frente às quais pessoas não rezam e, situação constrangedora e incompreensível para ele, grande parte delas fica de costas às obras olhando para estranhos aparelhinhos luminosos como se fossem espelhos… Talvez história da arte seja produto de uma época em que se faz cada vez menos obras religiosas, ao menos entre grandes artistas reconhecidos como tais. Resta admirar obras formalmente, e ao escrever joga-se concepções contemporâneas para épocas passadas. Historiadores da arte tentam encaixar círculos em triângulos.

Historiadores da filosofia usam conceitos, questões e disciplinas que têm origem no século XIX para compreender textos filosóficos de épocas anteriores. Por exemplo, James Hankins escreve na introdução do Cambridge Companion to Renaissance Philosophy que “many subjects considered to belong to philosophy in the Renaissance would no longer be thought philosophical today”, e lista “botany, biology, medicine, physiology, optics, physics and cosmology”, entre outras. Então, ele diz: “Clearly some compromise is called for between the requirements of the modern academy and strict historicism, so philosophy for the purposes of the present collection will be understood approximately as it is understood today, as comprising, in other words, the philosophy of language, logic, metaphysics, psychology, religion, politics, and ethics.” Para eles, filosofia significa conjuntos de doutrinas de tais e tais filósofos ou períodos, mas não “conhecimento de coisas divinas e humanas conjuntamente com o estudo de bem viver”, como escreveu Gregor Reisch em 1503 em seu livro Margarita philosophica (Margarida filosófica). Historiadores da filosofia escrevem história de setores específicos da filosofia, em geral aqueles mais abstratos, e talvez pouco importe que tais e tais filósofos conceberam suas doutrinas em vista de viver bem. Funciona? Sim, mas também de modo um tanto torto. Esquecendo “botany”, “biology” e outras disciplinas posteriores, imagine-se um filósofo-teólogo como Marsilio Ficino lendo esse volume da Cambridge, erudito e importante, mas que pouco se ocupa de questões de bem viver e de salvação. Talvez Ficino gostasse de textos de Pierre Hadot a respeito de filosofia como modo de vida… Talvez história da filosofia como feita hoje seja produto de uma época em que cada vez menos pensa filosofia em sentido amplo, ao menos entre grandes filósofos hoje reconhecidos como tais. Resta ler textos anacronicamente, e ao escrever partes de sua longa história joga-se concepções contemporâneas para épocas passadas. Como no caso de historiadores da arte, se existem sobreposições entre conceitos, questões e disciplinas renascentistas, e conceitos, questões e disciplinas contemporâneas, Hankins também tenta encaixar círculos em triângulos.

O “compromise” referido por Hankins também faz parte de outras disciplinas contemporâneas. Em sua edição Mechanics in Sixteenth-Century Italy, Stillman Drake diz: “The word ‘mechanics’ covers several more or less distinguishable areas. The most obvious of these – that is, the actual construction and use of machines – belongs to the history of technology rather than to that of science.” Como Hankins, Drake usa conceitos, questões e disciplinas também formadas a partir de meados do século XIX que não correspondem a disciplinas renascentistas. Por exemplo, a palavra “tecnologia” no período em questão significava um “tratado geral e muito útil da natureza e das diferentes artes liberais”, como diz Clemens Timpler em seu livro Metaphysicae systema methodicum (Metafísica ou sistema metódico), publicado em 1612. Questões e disciplinas, por sua vez, estavam organizadas em hierarquias de conhecimentos que não existem mais, cujos critérios eram graus de abstração da matéria e de certeza, e também utilidade. Funciona? Sim, mas também de modo torto. Aquela civiltà que renascia parece próxima, mas documentos sugerem um mundo um tanto diverso. O frontispício do La nova scientia (A nova ciência) de Niccolò Tartaglia mostra Euclides na parte inferior, e uma imagem da filosofia na parte superior, perto da qual estão Platão e Aristóteles. Entre eles, estão Tartaglia e as artes do Quadrivium acompanhados de disciplinas como astrologia, necromancia, hidromancia e feitiçaria, entre outras. Drake, que cita uma longa análise dessa gravura, perde conexões entre disciplinas que existiam lá e também não aponta para o contexto amplo da filosofia em sentido da época, que incluía a ciência mecânica e as diversas artes mecânicas. Drake também tenta encaixar círculos em triângulos.

Por aqui, ainda se usa a abordagem estruturalista de Victor Goldschmidt. Na parte histórica de seu conhecido artigo, ele admite: “A história dos fatos econômicos e políticos, a história das ciências, a história das ideias gerais (que são as de ninguém) fornecem um quadro cômodo, talvez indispensável, em todo o caso, não-filosófico, para a exposição das filosofias [i.e., de conjuntos de doutrinas de tais e tais filósofos]; eis aí, escreve E. Bréhier, ‘o tempo exterior ao sistema’.” Na parte lógica, ele coloca a questão de modo ingênuo: “O método é eminentemente filosófico: ele aborda uma doutrina [i.e., o conjunto de ideias de um dado filósofo] conforme a intenção de seu autor e, até o fim, conserva, no primeiro plano, o problema da verdade.” Entendo a oposição que ele faz abordagens históricas e lógicas, talvez exagerada de modo retórico. Entretanto, buscar “a intenção de seu autor” parece sem sentido para um historiador, e “o problema da verdade” sugere ingenuidade; ambas expressões sugerem “unidade” e noções semelhantes. Além disso, na parte histórica ele não fala de vocabulários de fontes que se estuda e de absorvê-los para falar delas, e nem levanta questões de tradução. Parece-me bizarro fazer história da filosofia enfatizando “tempo lógico”, mas não “tempo cronológico”. Conceitos, questões e disciplinas de cada período parecem não entrar em questão. O método estruturalista tende a ser anacrônico, como sugerem exemplos locais, e usando-o também tenta-se encaixar círculos em triângulos.

[como faço]

Distingo filosofia e história da filosofia. Quando se estuda fontes de época, existem duas opções principais. A primeira visa fazer história da filosofia, ou seja, estudar fontes considerando vocabulários, conceitos e questões do período em que tais fontes foram escritas. Esta é a tarefa de acadêmicos, e talvez assim eles possam supor como tais e tais filósofos pensaram tais e tais questões em seus respectivos períodos históricos. A segunda visa fazer filosofia, ou seja, estudar fontes para pensar vocabulários, conceitos e questões do período em que se estuda tais fontes. Esta é a tarefa de filósofos, que visam pensar explicitamente questões de seus próprios períodos. Para que essa ideia fique clara, recordo livros como The Cambridge Companion to Galileo, editado por Peter Machamer, e Die Krisis der europäischen Wissenschaften und die transzendentale Phänomenologie, de Edmund Husserl. Os acadêmicos que escreveram The Cambridge Companion estavam interessados entender a formação da nova física matemática, entre outras questões, mas ao escrever Die Krisis Husserl considerava consequências da ciência moderna na Europa pouco antes da Segunda Grande Guerra. Não existe distinção precisa entre história da filosofia e filosofia (assumir distinções precisas sugere ingenuidade). Ernst Cassirer, por exemplo, fez história da filosofia influenciado por sua filosofia neokantiana, e fez sua filosofia neokantiana a partir do vasto conhecimento que tinha da história da filosofia (e de linguística, artes, ciências, antropologia e muitos mais). Cassirer fez interpretações filosóficas da história da filosofia. Entretanto, e não obstante este e inúmeros outros matizes, a distinção entre história da filosofia e filosofia torna claros vocabulários, conceitos e questões de estudos que se faz. Assim, pode-se saber que fins amplos se quer – história da filosofia ou filosofia – e delimitar fins específicos. Assim, pode-se organizar métodos para chegar a eles. Por exemplo, se alguém quiser estudar Galileu como historiador, que estude latim e italiano, leia fontes de época para selecionar vocabulário que aponte para conceitos, questões e disciplinas da época de Galileu, e também busque referências acadêmicas consideradas importantes para seus fins históricos. Agora, se alguém quiser estudar Galileu como filósofo, que estude textos de filósofos que tratam de conceitos e questões que possam extrair de Galileu conforme seus fins filosóficos. Saber fins determina modos de ler e pensar, e também de escrever.

Considero usos e sentidos de palavras centrais da época. Por exemplo, no Renascimento a palavra “filosofia” era usada como Gregor Reisch (1503) escreve logo no início de seu livro Margarita philosophica: “Filosofia é conhecimento de coisas divinas e humanas conjuntamente com o estudo de bem viver”, como escrito acima. Qualquer conhecimento organizado por princípios e causas que podia ser ensinado era chamado de filosofia. Assim, como Varchi diz em um texto a respeito de prefácios, “clara coisa é que não se pode encontrar coisa alguma em lugar algum que não caia sob a Filosofia”. Então, “no princípio de todas as obras, se deve declarar se a matéria que em tal livro se trata é ciência ou arte”, ou seja, conhecimentos teóricos ou práticos: “a cognição das coisas universais e necessárias e consequentemente eternas, tida mediante demonstração”, e “um hábito intelectivo com verdadeira razão” respectivamente, em definições tipicamente aristotélicas. Esses conhecimentos estavam hierarquizados em divisões da filosofia, que no fim das contas descrevem variações de temas aristotélicos de origem platônica. Uso fontes de época, inclusive dicionários e léxicos de época, como o Dictionarium (Dicionário) latino de Ambrogio Calepino (primeira edição publicada em 1502) e, já no fim do período em questão, o Compendium philosophicum (Compêndio filosófico) de Johann Heinrich Alsted (1626). Em suma, viso recuperar vocabulários que apontem para conceitos, questões e disciplinas da época que estudo, e também suas relações.

Definições essenciais estão fora de questão. Não considero definições simples que implicam condições necessárias e suficientes para definir tal e tal fenômeno ou objeto, mas sim definições de condições que se intersectam de modo complexo de acordo com seus usos em seus respectivos contextos históricos. Assim, considero também usos e sentidos de “filosofia” em nossa época. Em nosso meio universitário, usa-se a palavra “filosofia” principalmente no sentido de conjuntos de doutrinas de certos filósofos (filosofia aristotélica ou filosofia kantiana), de tradições históricas consolidadas no último século e meio (filosofia grega ou filosofia moderna) ou de perspectivas/escolas contemporâneas (filosofia analítica ou filosofia continental). Por fim, divisões da filosofia também estão fora de questão. Cada disciplina tem vocabulários e conceitos, questões e autores de referência. Quando muito, existem áreas de conhecimentos agrupadas por motivos diversos, como sugere o Map of Science de Katy Börner. Em Harvard, por exemplo, historiadores da filosofia como Hankins estão no departamento de história.

Ao fazer história da filosofia, defino vocabulários que apontam para conceitos e divisões da filosofia de lá e de cá para fazer correlações de época e evitar sentidos que não se sobrepõem. Em meus estudos, as palavras “ars” e “arte” em textos de Leon Battista Alberti e Leonardo da Vinci, por exemplo, fazem mais sentido se relacionadas ao dicionário latino de Calepino e a textos de Varchi do que se relacionadas a livros de estética e de história da arte. As artes, efetivamente, eram parte da filosofia, e “philosophia” e “filosofia” também fazem mais sentido se relacionadas a fontes de época, não a textos posteriores de historiadores da filosofia como Hankins. Importa-me fazer mais conexões entre fontes de época do que entre fontes de época e textos posteriores, esperando não encaixar não círculos em triângulos, mas círculos em círculos.

Considero também questões de época, como relações entre paganismo e cristianismo, que fornecem uma espécie de background amplo do período. O cosmos do período talvez seja a melhor expressão disso. Considero também a nova dignidade dada à vita activa e às artes, o fim de parte significativa do mundo antigo e a formação da ciência moderna.

A perspectiva ampla de estudos que aqui apresento permite aproximar disciplinas como história da filosofia, história da ciência e história da arte, que produzem resultados importantes. Dou um passo para trás, por assim dizer, para poder usar resultados importantes dessas disciplinas contemporâneas, e então esquecê-las.

[o que resta]

Faço história da filosofia do Renascimento como filosofia era entendida no Renascimento, não como entendida hoje. Isso me permite pensar um arco que parte dos relevos do Campanile de Florença, que celebram a vita activa e as artes que literalmente faziam a Florença no Renascimento e são objetos de historiadores da arte, e chega às duas novas ciências de Galileu, objetos de historiadores e de filósofos da ciência. Eis um arco que ainda não foi feito. Isso também me permite entender Nicolau Copérnico como parte da história da filosofia como lá entendida, não como parte da história da ciência ou da filosofia da ciência.

Isso me permite pensar compêndios organizados segundo divisões da filosofia do Renascimento, não conforme tópicos posteriores. Isso me permite pensar história da filosofia organizada segundo usos e sentidos de “philosophia” e suas traduções ao longo de períodos históricos, não segundo ideias formadas no último século e meio. Talvez seja como uma coleção de CDs que compreende a história da música ocidental, na qual cada período está representado por interpretações historicamente informadas.

Não viso fazer história como se fazia no Renascimento. História lá ainda estava relacionada à poética e à retórica como então compreendidas, como diz Varchi: “Resta-nos a História, a qual está entre a Retórica e a Poética, a forma da qual é a verdade, mas nas coisas civis no mais das vezes feitas pelo homem, e por consequência contingentes, e a sua matéria ou verdadeiro instrumento são as palavras, como todas as artes racionais.”

Por fim, recordo Nikolaus Harnoncourt, um dos pioneiros de interpretações históricas de música barroca. Perguntado a respeito da impossibilidade de saber como se interpretava na época de Johann Sebastian Bach, ele dizia: “Certes nous ne savons pas exactement comment c’était, mais nous savons très exactement comment ce n’était pas.”

[por que motivos faço desse modo]

Uma partitura de Johann Sebastian Bach, por exemplo, permite inúmeras abordagens de interpretação. Pode-se interpretar Bach utilizando orquestras e modos de interpretar derivados de orquestras e de modos de interpretar da segunda metade do século XIX, por exemplo. Pode-se interpretar Bach utilizando fontes de época, como instrumentos e tratados, como se faz desde meados do século passado, sendo Harnoncourt personagem central nesse tipo de interpretação. Caso se queira, pode-se rearranjar Bach como fizeram músicos tão diversos quanto o maestro Leopold Stokowski e o pianista de jazz Jacques Loussier. A questão aqui diz respeito a esclarecer – nomear, explicitar e interrogar – que tipo de interpretação se faz para que se faça seguindo métodos e para que seja apreciada como se faz.

Viso entendimento histórico. Evitando anacronismos, talvez se possa explicar questões que disciplinas contemporâneas não explicam, como sugerem os exemplos citados acima. É importante dizer que acima escrevo “usos”, palavra que implica o segundo Wittgenstein. Entretanto, uso essa palavra de modo particular; usos (ocorrências) produzem sentidos (em indivíduos). De qualquer modo, por hora não conheço abordagem melhor.

[“there is more one thing…”]

Também viso preparar alunos para fazer filosofia de modo rigoroso, caso queiram. Não se filosofa ex nihilo e, sem conhecimentos de história da filosofia, corre-se riscos de cometer erros e, como se diz, de reinventar a roda. Então, que se conheça história da filosofia para saber ler fontes, conforme noções de filosofia de suas respectivas épocas. Também, que se conheça história da filosofia para saber extrair noções de textos filosóficos que em um dado momento interessam para pensar questões contemporâneas; “saber extrair” implica entender conceitos de época, e também pensar como e para que fins se extrai tais e tais conceitos. Filósofos não precisam ter rigor de historiadores, pois esse não é seu foco principal, mas que sejam rigorosos. Além disso, caso queiram extrair noções anacronicamente, que saibam disso. Não me parece problema algum que alguém use explicitamente conceitos e questões contemporâneas para estudar Aristóteles ou Galileu, por exemplo, mas que deixe isso claro para si e para seus leitores.

De volta à Itália

Eduardo Kickhöfel. Florença vista do Piazzale Michelangelo em novembro de 2018.

De volta à Itália

Eduardo Kickhöfel

Estou de volta a este blog, sim, mas em doses homeopáticas. Ideias para posts não me faltam, e a cada semana adiciono temas e notas em um arquivo específico. Entretanto, os dias têm apenas vinte e quatro horas e as semanas, sete dias. Então, pela segunda vez não consegui publicar posts a respeito de um curso, neste caso o curso copernicano do semestre passado. Um dia, quem sabe, eu consiga. Seja como for, minha mania por ordem me fez tirar os três posts desse curso. Cedo ou tarde, as ideias lá escritas estarão aqui novamente, devidamente renovadas.

Admito que nos últimos meses não deixei de observar macacos-prego nem de ler textos de evolução e primatologia, entre outros. Sei que professores de filosofia não fazem esse tipo de coisa e, se eu fosse um cara típico da filosofia acadêmica, eu não confiaria em um tipo que se diverte vendo vídeos e lendo livros de Robert Sapolsky, e também perversamente planeja um curso para graduação a partir do novíssimo livro The Skeptics’ Guide to the Universe. Dispersão ronda continuamente minha vida, e aqui e ali consegui fazer alguns rabiscos sobre papeis e placas de cobre, por exemplo, e participei de um evento internacional de neurociências. Entretanto, tenho melhorado minha disciplina diária. Tenho terminado artigos a respeito de questões renascentistas e partes de meu livro-catálogo a respeito de Leonardo da Vinci como anatomista. Nos últimos meses, também cuidei de meus alunos em reuniões individuais.

Agora, como diz o título deste post, estou na Itália outra vez, país que amo visceralmente. Certo, sou latino, mas tenho cromossomos germânicos que talvez me permitam estar aqui tendo uma certa distância. Então, vejamos… A Itália me parece um restaurante de luxo, tradicional e um tanto cafona. Até poucas décadas atrás, era destino de ingleses endinheirados e aristocratas, e estava constantemente cheio. A comia era boa, mas existiam problemas como pequenas manchas em guardanapos de linho, por exemplo, isso por não falar de falhas no serviço que incluíam contas exageradas entregues por simpáticos e profissionais garçons. O gerente fazia das suas, como se diz, e o desperdício era grande. Funcionava no vermelho, de fato. O proprietário parecia não se importar com o estado de coisas, e rolava dívidas. Os clientes, às vezes um tanto atônitos, descontavam uma certa latinidade confusa e um tanto corrupta, especialmente ao considerar a beleza natural e o inigualável patrimônio cultural italiano, o maior do Ocidente. Voltavam para cá de qualquer modo, claro. Passadas algumas décadas, o restaurante continua luxuoso, tradicional e cafona. O turismo agora vem principalmente do outro lado do mundo. O restaurante continua cheio, e ainda serve comida saborosa dos anos sessenta e setenta, embora irregular. Entretanto, concorrentes próximos, como a nouvelle cousine francesa e a deconstrucción de Ferran Adrià, agravam a crise que lá já era evidente. Os tempos requerem austeridade, mas os problemas continuam e tomam feições crônicas. O gerente faz mais dívidas, desperdiça de modo inédito e gasta em festas para se autopromover. As contas no vermelho parecem não assustar. O proprietário pede ajuda ao governo, mas usa empréstimos para trocar sua Ferrari e continuar sua vida de bon vivant, pensando que seus amigos no governo de algum modo resolverão seus problemas. O restaurante continua cheio, e a beleza e o patrimônio cultural em torno falam alto, por assim dizer. Os turistas voltam para cá de qualquer modo, claro. Entretanto, um pouco de bom senso e matemática dizem que um dia o restaurante quebrará, sem chance. Descrevi assim a Itália certa vez para dois amigos italianos, e eles me disseram: “Hai capito benissimo com’è l’Italia, Edoardo!” Seja como for, nos próximos meses colocarei fotos de meus dias italianos em minha conta no Instagram.

A partir deste post, este blog e seu espelho La natura deli strumenti meccanici estão separados. Neste blog, escreverei a respeito de questões renascentistas. No outro blog, escreverei a respeito de questões de um modo ou de outro relacionadas às ciências naturais.

De volta, mais uma vez

Ulysses Bôscolo de Paula. Vida de atelier, vida de aprendiz. Atelier Piratininga, agosto de 2018.

De volta, mais uma vez

Eduardo Kickhöfel

I. Na semana passada, reli o livro Neanderthal Man, no qual Svante Päabo conta seus vinte e cinco anos de pesquisas para mapear o genoma do homem de Neandertal. Uma dada passagem me fez pensar a respeito de péssimos hábitos que tenho: “Some scientists are so driven by intellectual curiosity that once they’ve found the solution to a problem, they will be remiss in going through the tedium of writing it up and publishing it. This, of course, is very bad.” Não sou cientista, mas penso que essa opinião se adapta a minha vida acadêmica. No caso de meu livro-catálogo a respeito dos estudos de anatomia de Leonardo da Vinci, as questões que propus estão resolvidas. Talvez eu encontre minúcias aqui e ali, mas não creio que as fontes que lerei e as reflexões que farei me sugerirão mudar de modo significativo meus argumentos centrais. Agora, minha diversão está voltada a terminar esse imenso quebra-cabeça, ou seja, todas aquelas notas de rodapé. O “grinding work of scholarship”, com diz um conhecido, talvez seja tedioso em certos momentos.

Outro motivo me faz um tipo pouco produtivo. Reviso exaustivamente qualquer texto que escrevo e, se eu continuar assim, terminarei o livro-catálogo por volta de 2050! Seja como for, espero oferecer a meus leitores textos meticulosamente pensados e elaborados. Busco conceitos e questões centrais dos temas que estudo e articulo textos em torno deles. Escrevê-los talvez seja como desenhar. Quando começo um desenho, sou um tanto livre, por assim dizer. Usando palavras de Leonardo da Vinci, esboço “grossamente le membra delle figure” para entender como organizo ideias em processo e, assim, visualizar “bellezza e bontà delle loro membra”, ou seja, “the solution to a problem”. Entretanto, à medida que imagino chegar ao fim, cada linha pesa mais, por assim dizer, e uma linha pode tanto finalizar como arruinar irremediavelmente o desenho que estou fazendo. Processos criativos têm idas e vindas, dependendo de feedbacks contínuos e não lineares, impossíveis de predizer. Aliás, há anos desenho esquemas de meus textos, e desde o ano passado marco parágrafos com cores para pensar simetrias entre argumentos, como faz Esa-Pekka Salonen ao compor obras orquestrais. Compor requer senso de forma, que por sua vez requer concentração. Recordo Richard Feynmann: “To do high, real good physics work you do need absolutely solid lengths of time, so that when you’re putting ideas together which are vague and hard to remember, it’s very much like building a house of cards and each of the cards is shaky, and if you forget one of them the whole thing collapses again.” Meu caso me parece muito mais simples do que física de partículas, mas tenho de me concentrar caso eu queira elaborar formulações amplas. Além disso, uso dezenas de fontes, sei que existem muitas mais que não lerei, e também suponho que existam ainda muitas mais, isso por não falar de fontes desconheço e outras que foram destruídas sem deixar traços. Quando muito, talvez eu consiga esboçar “grossamente le membra delle figure” e ver alguma “bellezza e bontà delle loro membra”, e então finalizar detalhes soltos. Escrever história talvez seja como desenhar um mapa de uma cidade a partir de ruínas que se conhece parcialmente, ou montar um quebra-cabeça de que se tem apenas peças separadas e do qual não se conhece o desenho amplo. Talvez seja como desenhar detalhadamente uma janela sem conhecer o estilo do prédio de que ela faz parte. De qualquer modo, se a tarefa que tenho a fazer em certos momentos talvez seja tediosa, talvez ela requeira mais esforço do que encontrar “the solution to a problem”. “The devil is in the details”, diz o ditado anglo-saxão, e talvez Svante Päabo tenha errado o ponto.

II. Isto posto, em meio a mais um abandono deste blog, estou em minha melhor fase intelectual. Ao longo do curso copernicano do semestre passado, reli o primeiro livro do De revolutionibus orbium coelestium de Nicolau Copérnico, e avancei por partes matemáticas. Reli textos “clássicos”, como The Copernican Revolution, de Thomas Kuhn, e li também uma série de artigos que eu não conhecia, alguns dos quais tão dispensáveis quanto importantes para pensar noções de qualidade, ou seja, quais textos apontam para conceitos e questões importantes e quais textos são meras frivolidades acadêmicas. Findo o curso e sem aulas neste semestre letivo, debruço-me diariamente sobre meu livro-catálogo – que espero terminar no próximo inverno italiano, seguindo o prazo dado por meu editor – e sobre cinco artigos a respeito de Leonardo da Vinci. O curso de modelos matemáticos em evolução social, por sua vez, me fez conhecer livros interessantíssimos, especialmente Darwin’s Unfinished Symphony, de Kevin L. Laland, e Supercooperators, de Martin A. Nowak. O curso também me fez pensar a respeito de modelos e suas relações com eventos experimentais e cotidianos. Talvez um dia, modelos vindos de teorias dos jogos soem ingênuos por serem simplificações excessivas de comportamentos, como hoje se considera teorias elaboradas por filósofos antigos a respeito do universo e de modos de conhecer. Entretanto, esses modelos permitem avançar milímetro após milímetro, que seja mostrando caminhos equivocados. Seja como for, aprendi rudimentos de modelagem para entender como se estuda sistemas dinâmicos. Após anos de estudo, sei que minhas buscas intelectuais estão em torno de entender coevolução gene-cultura e evolução cultural cumulativa. Um de meus planos visa pensar o Renascimento como estudo de caso de evolução cultural cumulativa. Não sei se é possível estudar aquele período histórico desse modo, mas tenho tentado. Aliás, eventualmente penso que a disciplina História da Filosofia da Renascença, da qual sou docente, talvez fosse melhor nomeada como Comportamento Animal IV… De qualquer modo, a partir o mês que vem acompanharei de perto experimentos que visam estudar formas de cooperação em uma população de macacos-prego. Aliás, disperso como usual, voltei a fazer gravuras, como mostra a foto acima. Minha vida gira em torno de estudos, claro, e não esqueço que “lo intelletto al disegno si diletta”.

Admito dispersão, mas viver como especialista acadêmico não me interessa, e sim como um especialista em aproximar disciplinas, como escrevi certa vez neste blog. Estou atrás de conceitos e questões centrais para entender o Renascimento e nossa época. Talvez minhas questões sejam amplas demais e eu esteja fadado ao fracasso, mas neste momento aceito os riscos. Entretanto, tendo tantas matérias novas a estudar, talvez eu queira ser apenas um aprendiz, como sugere Shunryu Suzuki: “In the beginner’s mind there are many possibilities, in the expert’s mind there are few.” Seja como for, ao longo das próximas semanas publicarei aqui posts a respeito do curso copernicano como forma de organizar minhas notas de aula. Felizmente, tenho agora duas colegas que revisarão meus textos e que, espero, não me deixarão mais abandonar este blog.

“La piu bell’opera e la piu stupenda che si possa mai fare nell’arte della Scultura.”

Michelangelo. David. Mármore, 434 cm (altura), 1501-04. Galleria dell’Accademia, Florença. Foto de Jörg Bittner.

La piu bell’opera e la piu stupenda che si possa mai fare nell’arte della Scultura.”

Eduardo Kickhöfel

I. O David continua a ocupar minhas sinapses, e espero que alguém tenha interesse e desenvolva o post anterior em vista de um projeto de pesquisa. Caso contrário, terei eu de fazê-la… Neste post apresento um ou outro comentário a respeito em vista de esclarecer questões e apontar direções para quem topar a parada.

II. Aprecio textos que tenham clareza conceitual e textos que definam e articulem questões centrais por um motivo simples: textos claros e organizados facilitam leituras. Aprecio também sínteses que a língua inglesa permite: “key-words” e “key-questions”.

Quanto à clareza conceitual, penso a respeito de definir conceitos centrais e conceitos subordinados que se usa em tal e tal texto. Como escrevi recentemente, não penso que existem definições essenciais, no sentido definições simples nos termos de um conjunto de condições necessárias e suficientes. Entretanto, posso esclarecer usos que se faço de tais e tais palavras, definindo condições de acordo com seus usos em seus respectivos contextos históricos, de modo a ter um conceito que posso articular com outros em um dado texto. Na pesquisa proposta, o conceito central chama-se arte, e os conceitos subordinados são arte mecânica e arte liberal, entre outros. O autor de referência chama-se Benedetto Varchi. Nascido em 1503 e de formação humanista, Varchi escreveu uma importante história de Florença e textos em prosa e verso, e também textos a respeito de variados temas, como a divisão da filosofia, métodos e artes. Dos textos a respeito de artes, as duas Lezzioni tratam de temas diretamente relacionados a Michelangelo; a primeira delas trata de um soneto de Michelangelo, e a segunda trata de uma disputa entre pintura e escultura, para a qual, inclusive, o próprio Michelangelo contribuiu. Varchi também escreveu a oração fúnebre de Michelangelo, a meu conhecimento a primeira escrita para um artífice, e publicada em 1564. Nela, Varchi diz que Michelangelo foi “perfetto Pittore, perfetto Scultore, e perfetto Architettore”, e conta a história do David:

Cauò d’un marmo di noue braccia piu veramente storpiato affatto, che malamente abbozzato; e risuscitando, si può dire, vn morto; quel Dauitte, che noi (chiamato volgarmente il Gigante di Piazza) ueggiamo à tutte l’hore nel principio della ringhiera, dinanzi alla porta principale del palazzo già de’ Magnifici, et eccelsi Signori, e hoggi dell’Illustrissimo, ed Eccellentissimo Sig. Duca Cosimo Medici, e se bene il verderlo noi cosi spesso cagiona che noi ne facciamo minore marauiglia, non è però che egli non sia la piu bell’opera, e la piu stupenda no dirò solo che si sia mai fatta, ma che si possa mai fare nell’arte della Scultura.

[Michelangelo] esculpiu um mármore de nove braccia verdadeiramente estropiado e mal esboçado, ressuscitando um morto, se pode dizer. Aquele David, que nós vulgarmente chamamos o Gigante da Praça, vemos a toda hora no começo da ringhiera, em frente à porta principal do palacio já dos Magníficos e excelsos Senhores, hoje do Ilustríssimo e Excelentíssimo Sr. Duca Cosimo Medici. E se bem que vê-lo frequentemente causa que façamos dele pouca maravilha, não é que ele não seja a mais bela obra, a mais estupenda não digo apenas que já feita, mas que se possa fazer na arte da escultura.

Certo, Varchi escreveu sua obra após o David, mas talvez expresse questões conceituais apropriadas à pesquisa aqui esboçada, como por exemplo o breve texto Divisione della filosofia, que sintetiza diversas tradições conceituais vindas dos gregos e filtradas posteriormente por autores romanos e também medievais. Após o Renascimento, como sugiro no post anterior, Alexander Gottlieb Baumgarten e Immanuel Kant talvez sejam os autores centrais para pensar novos conceitos de arte a partir do século XVIII.

No que diz respeito às questões-chave, penso a respeito de definir questões centrais e questões subordinadas da pesquisa que se faz. As questões centrais aqui são duas, que aqui reviso. A primeira questão pergunta por que motivos em 1504 o David, planejado para ser uma obra acessória em um programa de esculturas do Duomo de Florença, foi colocado como obra principal em frente ao Palazzo della Signoria, deixando de ser uma obra religiosa para ser uma obra cívica. Sendo preciso, em qualquer um dos locais o David era uma obra tanto religiosa quanto cívica, mas a mudança em questão enfatizou o David como obra cívica. A pergunta implica pensar questões específicas do contexto cívico-religioso da Florença da época já estudadas, e os autores de referência talvez sejam Girolamo Savonarola e Niccolò Machiavelli, contemporâneos de Michelangelo que de diversos modos influenciaram sua vida e sua obra. Essa questão também implica pensar novos valores dados às artes no Renascimento. Leon Battista Alberti é o autor de referência, especialmente seus três tratados a respeito das artes da pintura, escultura e arquitetura. Certo, Alberti escreveu no século XV, mas talvez sua obra expresse os anseios das gerações que formaram Michelangelo. A segunda questão pergunta por que motivos em 1873 o David foi transferido da Piazza della Signoria para a Galleria della Accademia, deixando de ser uma obra cívica para ser uma obra de arte. Essa pergunta implica pensar a formação da disciplina estética em meados do século XVIII, e de novo cito Baumgarten e Kant. Essa pergunta também implica pensar a formação de museus de arte como hoje conhecemos e da disciplina história da arte em meados do século XIX em Viena, de Rudolf Eitelberger e Moritz Thausing em diante, consolidando assim mudanças iniciadas no Renascimento.

Em suma, ambas questões estão relacionadas a mudanças feitas no conceito de arte, daí a importância de defini-lo em cada época. Dito de outro modo, a pesquisa aqui esboçada visa descrever e explicar mudanças feitas nesse conceito do Renascimento em diante.

III. O background que possibilitava o David ser considerado obra religiosa ou obra cívica não existe mais, e a pesquisa que aqui esboço visa restaurá-lo, que seja em páginas como esta que evoquem pensamentos que remetam àquela época. Não custa repetir: quando no Renascimento se escrevia “arte”, considerava-se formas de conhecimento que visavam agir e produzir, as quais existiam em função daquele background. A pesquisa visa também restaurar o background posterior que possibilitou mudanças no conceito de arte. A partir de meados do século XVIII, escreve-se “arte” considerando obras de arte, ou seja, obras apreciadas principalmente por suas características estético-formais.

Proponho que se parta de questões conceituais, a pesquisa requer documentos de diversos tipos, como desenhos, pinturas e, claro, esculturas. Nesse sentido, documentos sugerem que em diversas obras foram feitas antes de sua conceitualização. A perspectiva para uso de artífices talvez seja um bom exemplo. Intuída por Giotto e descrita sumariamente por Cennino Cennini, a perspectiva foi inventada por Filippo Brunelleschi por volta de 1410, e coube a Alberti elaborá-la no De pictura em 1435, tratado que ele próprio traduziu para o italiano no ano seguinte como Della pittura. Então, conceitos e práticas progressivamente começaram a ser imbricados uns nos outros. O telescópio de Galileu talvez seja outro exemplo de um objeto feito a partir de tentativas e erros, cujas leis que o explicavam foram elaboradas após seus primeiros usos, inclusive o próprio Galileu ao observar a superfície da Lua e os satélites de Júpiter. Semelhantemente, pode-se pensar os conceitos de arte e artista como entendemos hoje, esboçadas no Renascimento e consolidadas entre os séculos XVIII e XIX. Nesse sentido, o David foi parte formada e formadora de certas artes no Renascimento e, dada sua importância, parte formadora do conceito de arte que então começava a ser elaborado.

Em suma, considera-se aqui o David de Michelangelo como uma obra privilegiada para a ampla pesquisa que aqui esboço. A obra, efetivamente, abre um imenso e rico leque de questões antigas até hoje presentes entre nós, como testemunha sua imensa fama na Galleria della Accademia, em Florença.

IV. Reli artigos para escrever este post. Ao final de um deles, “The Location of Michelangelo’s David: The Meeting of January 25, 1504”, Saul Levine diz: “Reading the minutes of the meeting […], one must conclude that the document belongs as much to the political literature of the period as it does to the archives of art history.” Entretanto, se “political literature” sugere filosofia política, ainda sim entendê-la requer conhecer em que parte da filosofia a política estava. Além disso, não custa insistir, não existia “art history” no Renascimento. Considera-se Giorgio Vasari como o primeiro historiador da arte, mas ele escreveu vidas seguindo modelos antigos como o greco-romano Plutarco, como é bem sabido.

Então, que tipo de história se faz? Escrevi história das ideias no post anterior, mas sem convicção. A pesquisa aqui esboçada não faz uso só de ideias, no sentido de concepções abstratas elaboradas sob a forma de textos. Certo, em um dos textos fundadores da história das ideias, The Great Chain of Being, Arthur Lovejoy escreve a respeito de “ideas which have affected men’s imaginations and emotions and behavior”. Infiro que ele também se referia a produtos que não eram apenas textos, mas ideias de diversos modos formalizadas em obras diversas, como desenhos e documentos semelhantes. Entretanto, talvez seja melhor pensar a respeito de história de formas de conhecimento e suas relações, e de suas práticas e seus produtos. Nesse sentido, posso escrever história da filosofia no sentido da época que estudo, ou seja, “Philosophia est divinarum humanarumque rerum cognitio cum studio bene vivendi coniuncta”, e que faço história da filosofia, suas práticas e seus produtos. Entretanto, suspeito que não serei entendido como quero devido a como se usa a palavra “filosofia” hoje. Por hora, deixo essa questão em aberto, e considero inclusive estudar noções de história da época em questão.

Seja como for, como o post anterior este post também exprime algumas sugestões vindas de minha formação variada e um tanto errática, de meus diversos interesses que me fazem ser um tipo disperso e improdutivo. Um projeto de pesquisa requer revisão bibliográfica a respeito de Michelangelo e do David, e também conhecimento de fontes de diversos períodos e seus comentadores. Tendo isso, a pesquisa também requer aproximar disciplinas como hoje existem para mostrar que, em certos casos, elas importam menos do que as questões que se faz. De novo, alguém aí se habilita?

“Un Davit giovane con una frombola in mano.”

Michelangelo. David. Mármore, 434 cm (altura), 1501-04. Galleria dell’Accademia, Florença. Foto de Steve Hanna.

“Un Davit giovane con una frombola in mano.”

Eduardo Kickhöfel

I. Tenho esboçado um projeto que chamo The Shape of Renaissance Philosophy. Em certos momentos, percebo claramente que não tenho vocabulário, ou seja, não tenho conceitos a respeito de questões, para prosseguir e avançar, situação que me recorda o começo de meu mestrado. Vindo de um curso de artes plásticas e sem formação em humanidades, eu era como uma pessoa que tentava falar uma língua estrangeira que pouco conhecia seu léxico e sua sintaxe. Minha situação era pior, de fato, pois além de não conhecer o vocabulário e a sintaxe da língua estrangeira que eu queria falar, eu não conhecia noções básicas a respeito de léxico e sintaxe. Quantas vezes eu falara as palavras “ciência” e “arte” sem definir uma e outra, sem sequer desconfiar que era importante defini-las? Aprendi entre muitos erros e alguns acertos, e cá estou. Estados assim não me fazem sofrer, longe disso, e funcionam como medidas. Sei que não sei e, se eu consigo avançar, tenho indícios de progresso, um milímetro que seja.

II. Em meio a impasses, aqui e ali recordei o final do último post, pensado um tanto all’improviso através das velhas ruas de Florença. Recordando, escrevi que saber que Michelangelo fez o David para ser colocado sobre um dos contrafortes de Santa Maria del Fiore tem importância como dado histórico, mas que me parece mais importante saber por que motivos o David foi colocado na Piazza della Signoria. Apresento aqui um esboço de um projeto de pesquisa.

A história do David está bem documentada. A encomenda original da Opera di Santa Maria del Fiore, feita a Agostino di Duccio em 1464, mencionava um David, parte de uma série de esculturas para os nichos da tribuna do Duomo de Florença. Em 1475, a encomenda foi passada a Antonio Rosselino. Ambos escultores não terminaram a obra devido às imperfeições do bloco de mármore de Carrara, que ficou abandonado, e em algum momento foi considerado colocar o David sobre um dos contrafortes do Duomo. Em 1501, a encomenda foi dada a Michelangelo que, se na época tinha apenas 26 anos, vinha do triunfo da Pietà, feita em Roma para o cardeal Jean de Bilhères. Utilizando o bloco de mármore em parte já talhado, Michelangelo fez o David em apenas dois anos, e a obra imediatamente foi vista como excepcional. No dia 25 de janeiro de 1504, uma comissão foi montada para decidir onde colocá-la. Nela, estavam presentes Andrea della Robbia, Cosimo Rosselli, Filippino Lippi, Sandro Botticelli e Leonardo da Vinci, entre outros, e foi decidido que o David seria colocado em frente ao Palazzo della Signoria. Luca Landucci, cronista da época, descreve o difícil transporte da obra:

E a dì 14 maggio 1504, si trasse dell’Opera el gigante di marmo; uscì fuori alle 24 ore, e ruppono el muro sopra la porta tanto che ne potessi uscire. E in questa notte fu gittato certi sassi al gigante per far male; bisognò fare la guardia la notte. E andava molto adagio, così ritto legato che ispenzolava, che non tocava co’ piedi; con fortissimi legni, e con grande ingegno; e penò 4 dì a giugnere in Piazza, giunse a dì 18 in su la Piazza a ore 12: aveva più di 40 uomini a farlo andare: aveva sotto 14 legni uniti, e quali si mutavano di mano in mano; e penossi insino a 8 dì di giugno 1504 a posarlo in su la ringhiera, dov’era la Giuditta, la quale s’ebbe a levare e porre in Palagio in terra. El detto gigante aveva fato Michelagnolo Buonarroti.

No dia 14 de maio de 1504, tirou-se da Opera o gigante de mármore; saiu de lá às 24 horas [i.e., 20h], e o muro da porta foi rompido para que dali ele pudesse sair. E nessa noite foram jogadas sobre ele pedras a fim de danificá-lo, e foi preciso fazer guarda à noite. E [o gigante] andava muito lentamente, pois estava amarrado em posição ereta e suspenso de modo que seus pés não tocavam o chão, [sobre um carro feito] com madeiras fortíssimas, de grande engenho. Demorou quatro dias para chegar à Piazza della Signoria, e chegou ali no dia 18 às 12 horas [i.e., 8h]. Havia mais de quarenta homens para movê-lo, e abaixo [do carro] havia 12 madeiras unidas, que passavam de mão em mão. E trabalharam até o dia 8 de junho para colocá-lo na ringhiera onde estava a Judite, que se teve de tirar e colocar no cortile do Palazzo. O dito gigante havia feito Michelangelo Buonarroti.

“Judite” refere-se à obra Judite e Holofernes, de Donatello, que fora comissionada pela família Medici e que, após sua expulsão em 1494, foi transferida para o local em que foi colocado o David, agora tendo conotações republicanas, ou seja, anti-mediceas. Isto posto, proponho aqui uma pesquisa a respeito do David não sob a perspectiva da história da arte, mas sob uma perspectiva ampla da história das ideias.

III. Como base da pesquisa, penso a respeito de estudar os conceitos “téchne” e “epistéme” em Platão e Aristóteles como formas de conhecimento hierarquizadas, sendo esta melhor e mais excelente do que aquela. Eis uma opinião corrente da Antiguidade, como também sugere Luciano de Samósata, no Somnium sive Vita Luciani: “Todos admiram os trabalhos dos grandes escultores, mas não querem ser escultores.” O centro desta parte possivelmente trata do conceito de “téchne”. Talvez se possa investigar o background mítico de ambos conceitos, e talvez desdobramentos históricos que, ao longo dos séculos, foram variações de temas aristotélicos de origem platônica.

Então, considero estudar os novos valores dados às artes e aos artífices no Renascimento italiano. Um bom começo talvez seja estudar o programa escultórico do Campanile do Duomo de Florença, feito por Andrea e Nino Pisano (e colaboradores) por volta de 1340. Os relevos mostram artes e ciências que faziam a Florença daquela época, em um programa cívico-religioso que começa com a criação de Adão e Eva, e segue com seus trabalhos após o pecado original. A falta de um relevo que represente o momento do pecado sugere que naquela época trabalho não era visto como punição divina, mas sim como parte das virtudes de homens que faziam seu próprio mundo. Os relevos seguintes mostram artes mencionadas no Gênesis, ou seja, ofícios ou profissões que implicavam conhecimentos mais ou menos sistematizados. Jabal representa a invenção do pastoreio e Jubal, a invenção da música. Tubalcain mostra a metalurgia, e Noé embriagado mostra a invenção do vinho, mas também alude ao pecado. Seguem-se diversas artes e ciências do mundo greco-romano, como a geometria e a arquitetura, a medicina e outras mais, sugerindo novos valores dados à vita activa e o status social crescente de certos artífices, inclusive escultores e pintores. Essa celebração de artes e ciências ocorria em um dos dois locais públicos mais importantes na Florença e mostra que vida religiosa e vida cívica estavam intimamente relacionadas, como escrevi no primeiro post deste ano. O programa também pode ser considerado uma espécie de suma esculpida. Fontes de época mencionam divisões da filosofia em sua maior parte aristotélicas, e a referência principal talvez seja o Didascalicon de Hugo de São Vitor, embora segundo Timothy Verdon, diretor do Museo dell’Opera del Duomo, o programa possa ter origem no teólogo dominicano florentino Remigio dei Girolami. De qualquer modo, talvez aqui esteja o monumento mais importante que descreve o lento processo de valorização das artes e da vita activa, ao menos em solo da Toscana.

Não era novidade que certos artífices começavam a ter prestígio inédito, sobretudo em área pisana. O Duomo di Santa Maria Assunta tem a tumba de Buscheto, seu arquiteto, na qual ele já no início do século XII está celebrado como novo Dédalo, mítico artífice grego. Um relevo feito por Bonamico, ativo também em Siena na segunda metade do século XII, hoje no Museo Nazionale San Matteo, tem a seguinte inscrição: “Opus quod videtis Bonus Amicus fecit P[ro]eo Orate.” (“Esta obra que vedes Bonamico fez; oreis por ele.”). Pinturas do século XIII também carregam assinaturas, como o crucifixo de Berlinghiero Berlinghieri que está no Museo Nazionale di Villa Guinigi em Lucca, datado c. 1220: “B[e]rlingeri me pinxit” (“Berlinghiero me pintou”); a Madona de Margarito d’Arezzo, que está na National Gallery de Washington, datada c. 1240-45: “Margarit[o] [de] [a]ritio me fecit” (“Margarito de Arezzo me fez”), obra muito similar à Madona que está no Museo Statale d’Arte Medievale e Moderna de Arezzo, inclusive sua assinatura; a cruz pintada por Giunta Pisano c. 1250, que está no Museo Nazionale San Matteo em Pisa: “Iuncta Pisanus me Fecit” (“Giunta Pisamo me fez”); o crucifixo de Rinaldo di Ranuccio datado em torno de 1265, que está na Pinacoteca Nazionale di Bologna: “Magis[tri] Rainaldo Ranvcii Pinsit h[oc] opus” (“Mestre Rinaldo di Ranuccio pintou esta obra”), entre outras. No século seguinte, recordo a madona pintada por Deodato Orlandi em 1301, que também está no Museo Nazionale San Matteo em Pisa: “A . D. M. CCCI Deodatu[s] . Orlandi . me Pinxit” (“No ano do Senhor 1301, Deodato Orlandi me pintou”); e a grande Maestà de Duccio no Museo dell’Opera del Duomo de Siena: “Mater Sancta Dei, sis causa senis requiei Sis Ducio vita, te quia pinxit ita” (“Santa Mãe de Deus, sejas a causa da paz de Siena e da vida de Duccio, que assim te pintou.”). Citando apenas mais um exemplo, a primeira porta de bronze do batistério de Florença feita por Andrea Pisano, também está assinada: “Andreas Ugolini nini de Pisis me fecit A D M CCC XXX.” (Andrea de Ugolino de Pisa me fez [no] ano do Senhor 1330.”).

Em um contexto que valorizava as artes de modo novo, Giotto di Bondone foi celebrado por Dante Alighieri na Divina commedia, e o cronista Giovanni Villani chama Giotto de “il più sovrano maestro stato in dipintura chessi trovasse al suo tempo” (“o mais soberano mestre de pintura que existia em seu tempo”), que “fu seppellito per lo Comune a Santa Reparata con grande onore” (“foi sepultado pela prefeitura [de Florença] em Santa Reparata com grande honra”). No Decameron, Giovanni Boccaccio faz um elogio a Giotto:

E l’altro, il cui nome fu Giotto, ebbe uno ingegno di tanta eccellenzia, che niuna cosa dà la natura, madre di tutte le cose e operatrice col continuo girar de’ cieli, che egli con lo stile e con la penna o col pennello non dipignesse sì simile a quella, che non simile, anzi più tosto dessa paresse, in tanto che molte volte nelle cose da lui fatte si truova che il visivo senso degli uomini vi prese errore, quello credendo esser vero che era dipinto. E per ciò, avendo egli quell’arte ritornata in luce, che molti secoli sotto gli error d’alcuni, che più a dilettar gli occhi degl’ignoranti che a compiacere allo ’ntelletto de’ savi dipignendo, era stata sepulta, meritamente una delle luci della fiorentina gloria dir si puote; e tanto più, quanto con maggiore umiltà maestro degli altri in ciò vivendo, quella acquistò, sempre rifiutando d’esser chiamato maestro.

E o outro, cujo nome foi Giotto, teve um engenho de tanta excelência que nenhuma coisa da natureza, mãe de todas as coisas e operadora do contínuo girar dos céus, [existia] que ele com o estilo, com a pena ou com o pincel não pintasse semelhante àquela, se não semelhante, mas ao contrário, mais prontamente parecia com ela, tanto que muitas vezes as coisas feitas por ele enganam o sentido da visão dos homens, acreditando eles ser verdade aquilo que é pintado. E por isso, tendo trazido de volta aquela arte, que por muitos séculos os erros de alguns, mais para deleitar os olhos dos ignorantes do que comprazer o intelecto dos sábios, fora sepultada, ele pode ser considerado uma das luzes da glória florentina; e mais ainda porque adquiriu humildade mesmo sendo mestre dos outros, recusando ser chamado com tal.

Pouco após, em 1416 Poggio Bracciolini descobriu o De architectura de Vitrúvio na biblioteca do monastério de Saint Gall, fazendo certas artes objetos das letras até então consideradas pouco próprias à dignidade humana. Os três tratados de arte escritos por Leon Battista Alberti, quais sejam, o De pictura (1435), o De re aedificatoria (terminado em 1452) e o De statua (circa 1460), podem ser vistos nesse contexto, e sugerem que essas três artes começaram a ser separadas já no século XV. Seu novo valor vinha principalmente se fundamentadas por ciências como a geometria e a óptica, e por artes sistematizadas pelos antigos, como a retórica e a poética. Nessa época, o escultor Lorenzo Ghiberti, artífice maior do Renascimento italiano, não apenas assinou as duas portas de bronze que fez para o Battistero de Florença, mas colocou nelas autorretratos e também redigiu um importante tratado de arte chamado Commentarii, no qual ele escreve sua autobiografia, a primeira conhecida de um artífice. O auge desse processo de valorizar artes e artífices no século XV está na obra de Leonardo da Vinci.

No contexto dos humanistas, fontes da época descrevem claramente o processo em questão. Alberti foi o personagem principal, e cito aqui Gianozzo Manetti:

Nostra namque, hoc est humana, sunt quoniam ab hominibus effecta cernuntur: omnes domus, omnia opida, omnes urbes, omnia denique orbis terrarum edificia, qui nimirum tanta et talia sunt, ut potius angelorum quam hominum opera ob magnam quandam eorum excellentiam iure censeri debeant. Nostre sunt picture, nostre sculpture; nostre sunt artes, nostre scientie, nostre sapientie; nostre sunt denique, ne de singulis longius diseramus cum prope infinita sint, omnes adinventiones, nostra omnia diversarum linguarum ac variarum litterarum genera.

São nossas, isto é, humanas, porque se vê claramente terem sido feitas por homens: todas as casas, todas as fortificações, todas as cidades, enfim, todas as construções da circunferência da Terra, que são tamanhas e de tal forma admiráveis, que com justiça se deve afirmar, por sua grande excelência, que são obras antes de anjos que de homens. Nossas são as pinturas, nossas as esculturas; nossas são as artes, nossos os conhecimentos, nossas as filosofias; nossas são, enfim, para que não nos demoremos em falar de uma a uma, uma vez que, na verdade, são infinitas, todas as descobertas, todas as diversidades de línguas e de escritas.

Michelangelo fez o David nesse contexto um tanto novo, devedor mais dos romanos do que dos gregos. Entretanto, convém não esquecer o valor ainda secundário das artes no renascimento, como diversas fontes atestam. Benedetto Varchi repete de modo claro concepções antigas: “Tutte le scienze, essendo nella ragione superiore et avendo più nobile fine, cioè contemplare, sono senza alcuno dubbio più nobili di tutte l’arti, le quali sono nella ragione inferiore et hanno men nobile fine, cioè operare.” (“Todas as ciências, estando na razão superior [do intelecto] e tendo o fim mais nobre, isto é, contemplar, são sem dúvida alguma mais nobres que todas as artes, as quais estão na razão inferior e tem o fim menos nobre, isto é, operar.”) Nesse sentido, convém lembrar que por esse motivo as artes existiam em função de background cívico-religioso. Benvenuto Cellini, que não era qualquer um no século XVI, em sua autobiografia escrita em meados do século XVI, repetidas vezes fala a respeito de servir: “servire Sua Eccellenzia” (“servir sua excelência”), “servire il mio Duca di Firenze” (“servir meu Duque de Florença [Cosme I de Medici]”), “ero andato di Italia in Francia solo per servire quel maraviglioso Re” (“fui da Itália à França para servir aquele maravilhoso rei [Francisco I]”) etc.

Isto posto, penso justamente a respeito de estudar o background cívico-religioso da comissão do David. No Duomo, o David faria parte de um programa para celebrar principalmente a vida religiosa da cidade, em meio a um programa que vinha desde sua fundação no final do século XIII e levado adiante no século XV. Em frente ao Palazzo della Signoria, seria um símbolo cívico-religioso que justificava a república florentina governada por Piero Soderini, em oposição à família Medici. Nesse sentido, entende-se por que a estátua foi apedrejada, possivelmente por partidários da família Medici. O sentido cívico da obra também está claramente descrito por Giorgio Vasari, na vida de Michelangelo, publicada em sua obra Le vite de’ più eccellenti architetti, pittori, et scultori italiani em 1550, ampliada em 1568:

Michelagnolo, fatto un modello di cera, finse in quello, per la insegna del Palazzo, un Davit giovane con una frombola in mano, acciò che, sì come egli aveva difeso il suo popolo e governatolo con giustizia, così chi governava quella città dovesse animosamente difenderla e giustamente governarla.

Michelangelo, tendo feito um modelo de cera, fez como emblema para o Palazzo um David jovem com uma funda em mãos, de modo que, como ele havia defendido seu povo e governado com justiça, assim quem governava aquela cidade deveria bravamente defendê-la e justamente governá-la.

É plausível pensar que a posição do David no Palazzo della Signoria já estava decidida no momento em que Michelangelo assinou o contrato da obra, que curiosamente não menciona onde a estátua seria colocada. Entretanto, essa opinião talvez seja contraditória com suas proporções; as dimensões da parte superior da estátua sugerem que ela foi feita para ser vista de longe. De qualquer modo, isso não muda a questão central que aqui proponho. Se a mudança já estava planejada em 1501, ela também foi feita em um contexto que valorizava as artes de modo inédito, e a reunião feita no dia 25 de janeiro de 1504 era apenas para ratificar publicamente a decisão. Certo, Judite e Holofernes de Donatello havia passado por um processo semelhante, por exemplo, mas o David talvez seja o caso exemplar, inclusive devido a sua fortuna posterior, como sugiro a seguir. Além disso, na reunião os pintores Piero di Cosimo e Filippino Lippi disseram que a decisão seria melhor se fosse deixada ao próprio Michelangelo. Eis Filippino a respeito disso: “Io [sono] per tutti e stato detto benissimo et credo che el maestro habia meglio e piu longamente pensato il luogo.” (“Sou de acordo com todos pelo que foi dito, e acredito que o mestre [i.e., Michelangelo] tenha melhor e mais longamente pensado a respeito do lugar [da obra].”) Parece-me fato notável que um artífice pudesse decidir o local de sua obra, sendo ela uma encomendada pública.

Em suma, a partir do enquadramento conceitual talvez se possa pensar o David não como parte da história da arte, mas como parte formada e formadora daquela civiltà que renascia, especialmente ao considerar ideias a respeito de artes em função da parte política da filosofia prática, ou seja, aquela parte que “declara como se deve reger e governar os estados, assim como as repúblicas e reinos”, nas palavras de Benedetto Varchi. Textos que li para escrever este post mencionam aspectos políticos do David e de sua mudança de posição, mas sem descrever seu contexto conceitual amplo e aprofundar as questões aqui propostas.

IV. Uma extensão da pesquisa talvez seja pensar por que motivos em 1873 o David foi transferido outra vez, agora para a Galleria dell’Accademia. Dito de outro modo, por que motivos uma obra cívico-religiosa transformada em uma obra de arte?

Aqui, considero estudar a fortuna da obra e de Michelangelo, a começar por Vasari. Por volta de 1506, um rico banqueiro chamado Agnolo Doni queria ter “alcuna cosa” de Michelangelo, que veio a ser o Tondo Doni:

Finita che ella fu, la mandò a casa Agnolo, coperta, per un mandato insieme con una poliz[z]a, e chiedeva settanta ducati per suo pagamento. Parve strano ad Agnolo, che era assegnata persona, spendere tanto in una pittura, se bene e’ conoscesse che più valesse: e disse al mandato che bastavano quaranta, e gliene diede; onde Michelagnolo gli rimandò indietro, mandandogli a dire che cento ducati o la pittura gli rimandasse indietro. Per il che Agnolo, a cui l’opera piaceva, disse: “Io gli darò quei 70”; et egli non fu contento, anzi per la poca fede d’Agnolo ne volle il doppio di quel che la prima volta ne aveva chiesto: per che, se Agnolo volse la pittura, fu forzato mandargli 140.

Terminada a obra, ele a mandou coberta para a casa de Agnolo, com um emissário e o pedido de setenta ducados para seu pagamento. Pareceu estranho a Agnolo, que era uma pessoa dotada, gastar tanto em uma pintura, embora ele sabia que ela valia até mais, e disse ao emissário que bastavam quarenta, e a ele os deu. E Michelangelo enviou de volta o emissário, pedindo agora cem ducados ou a pintura de volta. E então Agnolo, que gostava da obra, disse: “Eu darei aqueles 70.” E Michelangelo não ficou contente pela pouca fé de Agnolo, e quis então do dobro que havia pedido pela primeira vez. E porque Agnolo queria a pintura, foi forçado a enviar a ele 140.

Isso pode ser apenas uma anedota, mas parece plausível e sugere o início de uma certa independência de artífices como Michelangelo e do valor de suas obras. A primeira biografia de um artífice descreve a vida de Michelangelo, e foi escrita por Ascanio Condivi, e a oração fúnebre de Varchi a Michelangelo, publicada em 1564, talvez seja a primeira dedicada a um artífice. Como escrevo acima, Michelangelo não foi apenas parte do formada daquela civiltà, mas parte formadora.

Isto posto, penso a respeito de estudar ideias posteriores a respeito de arte e artista, as quais tiveram origem justamente naquele período, como a formação da disciplina estética e do conceito de arte que se usa hoje no século XVIII. Conheço pouco esse período, infelizmente, mas dois nomes centrais talvez sejam Alexander Gottlieb Baumgarten e Immanuel Kant. Talvez também seja importante entender o processo de formação da disciplina história da arte, sobretudo o uso da palavra “arte” como obra de arte. Johann Joachim Winckelmann em Geschichte der Kunst des Alterthums? Possivelmente, mas imagino que em textos italianos do XVIII esse sentido já esteja presente. Além disso, a história da arte como disciplina tem origem na chamada Escola de Viena. Tendo como fundadores Rudolf Eitelberger e Moritz Thausing, este último foi responsável por pensar a nova disciplina autônoma e formal, separando-a da estética. Franz Wickhoff e Alois Riegl levaram adiante essa direção. Pesquisas em história da arte também visam pensar contextos em que certas obras foram feitas, mas seu centro tende a ser análises formais, como mostram museus de arte.

V. Esse é um dos diversos projetos que tenho e que não farei por falta de tempo. Tenho planos de realizar uma biografia intelectual a respeito de Leonardo da Vinci nesses moldes. Entretanto, não obstante a base comum, o foco será tão diverso quanto Michelangelo foi diverso de Leonardo. Pode-se pensar Michelangelo como um artífice que dominou aquele período, mas Leonardo, além de artífice, teve interesses em filosofia natural distantes de práticas de oficina, e tornou-se um personagem único e difícil de classificação. Além disso, quem usar o esquema acima como base lerá fontes de época e textos complementares que não lerei, e assim fará uma pesquisa diversa. Adoraria ver alguém elaborar este post em vista de um projeto de pesquisa. Alguém aí se habilita?

Dei prolegomeni o precognizioni

Eduardo Kickhöfel. Foro Romano visto da Via Monte Tarpeo em janeiro de 2018. Roma, Itália.

Dei prolegomeni o precognizioni

Eduardo Kickhöfel

I. O tempo presente não é apenas antiquíssimo, mas após séculos de história suas camadas não estão dispostas umas sobre outras em padrões regulares e imediatamente identificáveis, como estratos geológicos depositados linearmente, mas sim entrelaçadas entre si em miríades de modos, como em cidades velhas. Não conheço exemplo melhor do que Roma, uma espécie de bricolage resultante de processos intrincados e acidentais, como mostra a foto acima. Certo, era Florença o centro do Renascimento entre os séculos XIV e XV, mas a maior parte das ruínas antigas estava em Roma, e humanistas e artífices de Florença viajavam para lá tendo como objetivo estudá-las e dar imaginação e vida aos textos que avidamente descobriam e liam. Além disso, Florença também era romana, e abaixo dos restos de Santa Reparata, igreja anterior ao Duomo, existem fragmentos de casas romanas, inclusive de mosaicos de artífices romano-africanos, e abaixo do Palazzo Vecchio existem restos de um teatro romano.

Escrevo estas linhas pensando a respeito de uma edição de prefácios renascentistas que tenho pensado, a qual talvez seja uma espécie de porta de entrada para a civiltà do Renascimento, das quais Roma e Florença são cidades exemplares, velhas cidades hoje encrustadas no mundo contemporâneo.

II. Talvez eu tenha imaginado esse projeto em alguma caminhada através de Florença no inverno passado, ou talvez folheando uma edição das obras completas de Benedetto Varchi, na qual encontrei o texto Dei prolegomeni o precognizioni (Dos prolegômenos ou das precognições). Sei tão pouco de mim que às vezes me surpreendo que escrevo páginas como esta. Entretanto, esse pouco saber não me esmaga, mas liberta-me para seguir adiante.

No ano passado, em reuniões de meu grupo de estudos, traduzimos e lemos linha após linha diversos prefácios para conhecer e incorporar vocabulários, conceitos e questões do Renascimento em nossos modos de pensar, discutir e escrever. Entretanto, eu ainda pensava o projeto como continuação do projeto galileano, do qual escrevi no post La fabrica delli strumenti, sem fazer expectativas de alguma data. Então, em um reunião no segundo semestre, decidimos realizá-lo neste ano como base para o livro galileano. Era óbvio, mas chegar a ideias óbvias requer tempo e, principalmente, uma certa teimosia de pensar questões tidas como simples. Entre outros textos, lemos os prefácios de Matteo Palmieri (Libro della vita civile), Cennino Cennini (Il libro dell’arte), Leon Battista Alberti (Della pittura), Luca Pacioli (De divina proportione), Nicolau Copérnico (De revolutionibus orbium coelestium) e Niccolò Tartaglia (General trattato di numeri et misure). Sendo preciso, nos casos de Cennini e Pacioli, lemos os primeiros capítulos de seus tratados que funcionam como prefácios. Escolhi esses textos em vista das pesquisas que desenvolvíamos.

Agora, tendo uma ideia esboçada, visamos ler outros prefácios de modo a desenharmos um amplo arco da civiltà do Renascimento Textos não faltam, efetivamente. Basta folhear a seção de fontes primárias do Cambridge History of Renaissance Philosophy, publicado em 1988, para que se tenha uma ideia da vasta produção filosófica do Renascimento. Passados trinta anos, dada a imensa quantidade de textos disponíveis em páginas como e-rara e Das Münchener DigitalisierungsZentrum, temos de estabelecer critérios para que não nos percamos. Recordo Jorge Luis Borges, no poema Junio 1968: “Ordenar bibliotecas es ejercer de un modo modesto y silencioso el arte de la crítica.”

Primeiro, por que motivos editar um livro de prefácios? Aqui, passo a palavra para Varchi, nas primeiras linhas de seu texto Dei prolegomeni o precognizioni:

Sogliono gli spositori greci, i quali non sono meno diligenti che dotti, sempre che esse pigliano a sporre o commentare qual si voglia libro, dichiarare primieramente alcuni capi che se chiamano da loro grecamente Prolegomeni, ciò è cose che si dicono innanzi, e da’ filosofi latini, i quali andarono imitando i Greci, Precognizioni, ciò è cose le quali si deono conoscere prima, ciò è sapere innanzi che si venga alla sposizione e dichiarazione del testo; senza i quali capi sarebbe, se non impossibile, certo malagevole intendere perfettamente le cose che in esso libro si contengono e trattano.

Costumam os expositores gregos, os quais não são menos diligentes que doutos, sempre que se colocam a expor ou comentar qualquer livro, a declarar primeiramente alguns preâmbulos que eles chamam gregamente Prolegômenos, isto é, as coisas que são ditas antes, e dos filósofos latinos, que imitaram os gregos, Precognições, ou seja, as coisas que se deve conhecer primeiro, isto é, saber antes que se vá à exposição e à declaração do texto. Sem esses preâmbulos seria, se não impossível, certamente difícil entender perfeitamente as coisas que esse livro contém e trata.

Segundo, em relação ao arco temporal, anoto que a palavra “Renascimento” aponta para um conceito elaborado por Jules Michelet no livro Histoire de France, publicado em 1855. Uso-a neste blog pelo simples motivo que não conheço alternativa viável, sem esquecer que filósofos, humanistas e artífices escreveram a respeito de voltar aos textos antigos para ter modelos louváveis e, então, restaurar e superar a grandeza da Antiguidade. Isto posto, entendemos o período compreendido aproximadamente entre os anos 1350 e 1650. A data inicial faz referência aos primeiros escritos de Francesco Petrarca, e a data final diz respeito à permanência da filosofia aristotélica nas universidades europeias. “Aproximadamente” significa não assumir distinções precisas, pois essas datas são convencionais. Certo, entre a filosofia natural de Jean Buridan e os Principia Mathematica de Isaac Newton existem diferenças fundamentais. Entretanto, não faz sentido perguntar quando precisamente foi instaurada a nova física dos modernos. Podemos considerar o livro de Nicolau Copérnico publicado em 1543, De revolutionibus orbium coelestium, como marco. Entretanto, diversas de suas concepções ainda são antigas, como o universo fechado no qual os corpos celestes fazem movimentos circulares e uniformes. Além disso, o atlas celeste de Andreas Cellarius Harmonia macrocosmica, publicado em 1660, ainda considera o cosmos aristotélico-ptolomaico como hipótese válida. Documentos não se apresentam dispostos em padrões regulares e imediatamente identificáveis, e tendo a ser pragmático quando uso palavras que denotam conceitos. Ao invés de pensar a respeito de “essências” e conceitos semelhantes, penso wittgensteinianamente a respeito de “relembranças de família”: ao definir um objeto ou fenômeno, não considero definições simples nos termos de um conjunto de condições necessárias e suficientes, mas sim a ideia de condições que se intersectam de modo complexo de acordo com seus usos em seus respectivos contextos históricos. Não precisamos saber limites precisos para estudar questões renascentistas, mas limites que estabelecemos tendo em vista objetivos específicos. Aliás, usemos a palavra “Renascimento”, desde que saibamos de suas virtudes e seus defeitos.

Terceiro, retomando questões do primeiro post deste ano, utilizamos vocabulários, conceitos e divisões da filosofia da época. Dito de modo simples, utilizamos noções básicas do próprio Renascimento para estudá-lo. Pensar divisões da filosofia tem especial importância para nós, pois elas fornecem uma espécie de mapa conceitual do período, explicitando relações ente conceitos centrais e relações entre esses conceitos e conceitos subordinados. Nesse sentido, tenho elaborado com uma aluna uma edição do texto Divisione della filosofia de Varchi, que expressa uma espécie de koiné aristotélica do período em questão. Essa edição incluirá um ensaio introdutório a respeito de diversas divisões da filosofia no Renascimento, que talvez a revisemos para o projeto que aqui apresento. Assim, neste ano estudaremos prefácios que tratam da parte teórica da filosofia, ou seja de questões metafísicas, matemáticas e físicas; prefácios que apontam para questões éticas, econômicas e políticas; e prefácios que tratam de artes específicas. Também aqui sugiro não assumirmos distinções precisas entre as partes da filosofia. Não raro, os saberes se apresentam entrelaçados entre si em miríades de modos, como parte de velhas cidades. Se a distinção básica entre ciências e artes – ou seja, entre saberes teóricos e saberes práticos – era permeável desde os antigos, como sugerem algumas das artes liberais, no período em questão essa distinção foi feita mais e mais permeável, sendo efetivamente uma de suas características importantes e distintivas. Um homem como Leon Battista Alberti transitava por diversas formas de saberes, e Galileu tinha formação como matemático e também mantinha uma oficina de instrumentos em Pádua.

Quarto, com anotei acima a respeito dos tratados de Cennini e Pacioli, considero editar não apenas prefácios nomeados como tais, mas também textos que servem como prefácios. Também, considero publicar prefácios escritos pelos próprios autores dos livros que apresentam, mas textos de editores e cartas dedicatórias de edições e reedições eventualmente funcionam como prefácios. Aliás, além de um ensaio introdutório e talvez breves ensaios para seções da edição, caso existam, considero traduzir Dei prolegomeni o precognizioni como uma espécie de guia para os textos que estudarmos.

Por fim, teremos uma série de questões editoriais para resolver, como por exemplo publicar ou não textos em suas línguas originais (que implica elaborar critérios de transcrição, caso usemos fac-símiles de textos de que temos edições recentes ou que jamais foram republicados), critérios de ordenação (cronológica ou temática) e outros mais. Seja como for, em breve farei uma seleção prévia de prefácios para que seja comentada e ampliada, e estou aberto a sugestões e críticas de qualquer espécie em torno do projeto aqui esboçado.

III. O projeto visa preencher uma série de lacunas acadêmicas. Em primeiro lugar, a filosofia do Renascimento compreende um vasto mundo a descobrir. Nesse sentido, visamos fornecer um instrumento inicial de pesquisa para que se possa conhecer autores importantes do Renascimento. A confiar em eventos e publicações acadêmicas que acompanho nos últimos vinte e poucos anos, Niccolò Machiavelli já tem lugar na história da filosofia política, e Michel de Montaigne é estudado principalmente no contexto da história do ceticismo. Nicolau de Cusa, Marsilio Ficino e Pico della Mirandola, por sua vez, são conhecidos, eles são restritos a investigadores especializados, e suspeito que Giordano Bruno seja conhecido mais por seu trágico fim do que por sua obra. Conheço quem estuda Leonardo Bruni, Lorenzo Valla e Benedetto Varchi, por exemplo, mas eles também fazem parte de estudiosos especializados. Francesco Petrarca, não obstante sua importância ao formular a ideia de vita activa, em geral é estudado por latinistas. Copérnico e Galileu talvez sejam os autores mais conhecidos e estudados, mas no âmbito da filosofia da ciência. De fato, não conheço um único texto que considere esses autores no contexto amplo da filosofia do Renascimento. Se vale um exemplo importante, ao falar da organização tradicional dos saberes na introdução de sua tradução do Dialogo sopra i due massimi sistemi del mondo, Pablo Mariconda volta à divisão das ciências sugerida por Aristóteles. Está correto, pois o contexto do Renascimento que Galileu enfrentou era aristotélico em suas linhas gerais. Entretanto, faz pouco sentido voltar ao estagirita existindo diversas divisões da filosofia elaboradas no Renascimento, inclusive a divisão de um jesuíta do Collegio Romano que viveu na época de Galileu, Franciscus Toletus, na qual Aristóteles aparece cristianizado. Vale dizer que a divisão proposta por Toletus está disponível no Cambridge History of Renaissance Philosophy, no qual é considerado por William Wallace importante por resumir as tradições gregas e latinas, assim como a escolástica na Itália e na Península Ibérica.

Em segundo lugar, visamos descrever e colocar em prática um método de estudos que visa entendimento histórico. Surpreendo-me com falta de rigor e precisão conceitual em textos que leio, e surpreendo-me também com falta de estudos de método. Não custa dizer, outra vez, que no Renascimento a palavra “arte” indicava conhecimentos práticos e ofícios de artífices que faziam obras seguindo encomendas e contratos, mas não a obras de arte feitas por artistas que expressam suas próprias subjetividades, e a palavra “ciência”, usada indistintamente da palavra “filosofia”, quando em relação a estudos sobre a natureza apontava para conhecimentos teóricos e especulativos subordinados a concepções metafísicas, mas não para leis naturais obtidas através de observações sistemáticas e experimentos, expressas matematicamente. Assim escrito, parece simples, mas chegar a essa formulação requer estudos meticulosos sobre fontes.

IV. Há poucos dias, caminhando ao lado do Duomo de Florença, pensei que saber que Michelangelo fez o David para ser colocado sobre um de seus contrafortes tem importância como dado histórico. Entretanto, parece-me mais importante saber por que motivos o David foi colocado na Piazza della Signoria, ou seja, em linguagem aristotélica sair do âmbito de experientes que só sabem o quê, mas não o porquê, para conhecer noções universais, justamente os porquês. Aqui, parece-me importante voltar a Platão e Aristóteles a respeito de artes e ciências como formas de conhecimento hierarquizadas, sendo estas melhores e mais excelentes do que aquelas (tendo como fundo questões míticas e religiosas); pensar a respeito do Campanile do Duomo e de fontes de época que mencionam divisões da filosofia (idem); pensar a respeito de novos valores dados à vita activa e às artes naquela civiltà que então renascia (e que lentamente iniciavam processos de secularização); pensar a respeito do background cívico-religioso por trás da comissão do David (um símbolo cívico-religioso que justificava a república de Piero Soderini); pensar ideias posteriores a respeito de arte, as quais tiveram origem justamente naquele período (ideias que fizeram o David ser colocado em outro lugar, ou seja, na Galleria dell’Accademia agora como obra de arte); etc.

Escrevo estas linhas porque pergunto-me diariamente por que motivos estudo. Dito de modo simples, experiências requerem conhecimentos prévios, e quanto mais conhecimentos tenho, mas intensas talvez elas sejam. Cidades velhas como Roma e Florença são complexas demais para qualquer vida, e talvez conhecer frações delas hoje, dado o volume de informações que temos à disposição, requeira novos instrumentos, como gráficos multidimensionais que dispõem documentos em redes e mostram padrões de dispersão, por exemplo. Talvez assim se possa perceber relações entre fenômenos e objetos – perceber conexões! – de modo cada vez mais intenso. Em seu devido tempo, escreverei a respeito de outro projeto já em curso, que elaboro em horas perdidas e que visa fornecer novos instrumentos para conhecer, do qual o projeto de prefácios seja o começo. Dito de modo ainda mais simples, estudar me diverte!

Dopo il restauro

Leonardo da Vinci. Adoração dos magos, 246 x 243 cm, c. 1481-82. Galleria degli Uffizi, Florença.

Dopo il restauro

Eduardo Kickhöfel

I. Eis a obra restaurada. Admito que durante alguns segundos a obra me pareceu fake, tamanha foi minha surpresa. Em um dado momento, conversei com o principal restaurador da obra, Roberto Bellucci, que me explicou detalhes da restauração e fez-me ver partes da obra de modo inédito, como a água aos pés da Virgem em primeiro plano, presente em outras obras de Leonardo da Vinci. Fiquei impressionado com as figuras à direita, desenhadas com pigmento branco sobre fundo escuro, feitas em um período posterior à primeira redação da obra. Elas me recordam pinturas que Tintoretto fez décadas após, como por exemplo um quadro inacabado Doge Alvise Mocenigo Presented to the Redeemer, em especial as figuras de Cristo e do músico logo abaixo, que está no Metropolitan Museum of Art. Quem quiser ver imagens e ler a respeito da restauração da Adorazione dei Magi, sugiro a leitura do texto Il restauro dell’Adorazione dei Magi di Leonardo da Vinci. Aliás, basta clicar nas imagens para vê-las em alta definição, e os leitores mais atentos verão até um elefantinho na versão restaurada.

O quadro inacabado apresenta um frescor que talvez se aproxime de seu estado original. Claro, ele tem áreas escurecidas devido ao decaimento de certos pigmentos, principalmente aqueles à base de cobre, que de verdes tornaram-se marrons ao longo dos séculos. Entretanto, os restauradores tiraram cuidadosamente camadas posteriores, como vernizes envelhecidos que ocultavam não só desenhos, mas também cores, como se vê no céu agora azulado.

II. Tal qual vernizes envelhecidos que ocultaram partes da obra, ao longo dos séculos certos usos de certas palavras foram perdidos e desapareceram, e novos usos foram elaborados. Como no caso da cidade velha, usos antigos determinaram novos usos. Como já escrevi diversas vezes neste blog, a palavra “arte” na época de Leonardo fazia referência a formas de conhecimento para produzir e profissões que delas faziam uso. Aliás, na Encyclopédie, ou dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers, publicada por Denis Diderot e Jean-Baptiste le Rond d’Alembert entre 1751 e 1772, arte ainda significa “discipline en général”, ou seja, o sentido de conhecimento que vinha dos antigos, e só em meados século XVIII a palavra “arte” começou a ser usada no sentido de obra de arte. Talvez o primeiro texto importante seja Geschichte der Kunst des Alterthums (História da Arte da Antiguidade), publicada por Johann Joachim Winckelmann em 1764, mas não duvido que se encontre o sentido de obra de arte em tratados italianos um pouco anteriores. Os sentidos de arte como conhecemos hoje em parte derivam dos sentidos antigos, ou seja, obras apreciadas principalmente por suas características estético-formais, independentemente do fato se foram feitas como tais. Semelhantemente, recordo que a palavra “filosofia”, que no Renascimento era usada no sentido de conhecimento de coisas humanas e divinas juntamente com o estudo do bem viver, mas não de doutrinas de certos filósofos (filosofia aristotélica e filosofia kantiana), tradições históricas consolidadas (filosofia grega e filosofia moderna) e escolas  contemporâneas (filosofia analítica e filosofia continental). Assim como restaurar obras da época de Leonardo requer conhecer materiais e a arte da pintura da época, restaurar sentidos de textos requer fontes que explicitam definições e divisões da filosofia. Também, restaurar requer conhecer restauros posteriores, seus objetivos e métodos, tal qual talvez seja útil conhecer a história da formação dos conceitos que usamos e da formação de nossas disciplinas.

Restaurado, o mundo continua “tudojuntomisturado”, mas de outro modo. Tendo em vista estudos históricos, agora pode-se categorizar, identificar elementos e estabelecer relações de modo renovado. Por exemplo, na segunda metade do século passado Paul Oskar Kristeller e Eugenio Garin escreveram longos e eruditos artigos a respeito da existência ou não de filosofia no Renascimento, cada qual seguido por inúmeros estudiosos. Tanto quanto recordo, esses textos não deixam precisa a ideia de filosofia da época, que fica quando muito subentendida. Basta ver a gravura de Gregor Reisch, que já publiquei aqui, ou ler o pequeno Divisione della filosofia de Benedetto Varchi para resolver essa questão. Se filosofia for considerada em sentido amplo, ou seja, conhecimentos sistematizados por princípios e causas, então os humanistas e retóricos florentinos foram filósofos, pois eles se ocupavam de questões da parte prática da filosofia (e Reisch coloca a retórica dentro da filosofia, mas Varchi sugere que certas pessoas querem que a retórica seja apenas instrumento que serve à filosofia). Se for considerada em sentido estrito, ou seja, conhecimento demonstrativo, eles não foram filósofos.

III. Restaurar a Adorazione foi um processo lento. Exames começaram em novembro de 2011, e somente em outubro de 2012 foi tomada a decisão de restaurá-la. A restauração durou quatro anos e meio, e os resultados surpreenderam, tal qual em outras restaurações polêmicas, como no caso da Capela Sistina e, recentemente, da Catedral de Chartres. Sair de hábitos cotidianos, que seja ver uma obra de arte como se fosse um velho amigo que nos faz confortável, exige não só esforços contínuos, mas aceitação contínua de erros e incertezas, como escrevi recentemente.

Hoje, estava relendo artigos do biólogo evolucionista Kevin N. Laland, entre os quais “Animal cultures”. Nesse artigo, Laland resume um argumento dos autores de livros importantes como The Origin and Evolution of Cultures: “Rob Boyd and Peter Richerson postulated a costly information hypothesis, which proposes an evolutionary trade-off between reliable but costly self-acquired information and potentially less reliable but cheap socially transmitted information.” Sorri maldosamente ao ler “cheap socially transmitted information”, recordando o ambiente acadêmico de que faço parte, não obstante pretensões em contrário de quem faz parte dele…

Após dois posts um tanto improvisados e rápidos, o próximo post tratará do projeto de prefácios que meus alunos e eu desenvolveremos neste ano.

Adorazione dei Magi

Leonardo da Vinci. Adoração dos magos, 246 x 243 cm, c. 1481-82. Galleria degli Uffizi, Florença.

Adorazione dei Magi

Eduardo Kickhöfel

I. Na semana passada, recebi um convite para ver a Adorazione dei Magi de Leonardo da Vinci após o recente restauro, em uma visita fechada para estudiosos na Galleria degli Uffizi. Na segunda-feira de manhã, após leves e breves conversas com conhecidos e desconhecidos, subi um pouco agitado à sala da Adorazione. Enquanto o diretor da galeria estava fazendo uma breve introdução na primeira das salas dedicadas à obra, eu e uma historiadora do Kunsthistorisches Institut saímos discretamente para ver a Adorazione. Vendo aquela imensa pintura inacabada, praticamente um esboço, sorri como há muito tempo eu não sorria.

Como estudioso da civiltà em que viveu Leonardo, pensei a respeito do tema representado, ou seja, a epifania de Cristo que anuncia a salvação da humanidade, tema que de diversos modos cimentava relações sociais daquela cidade na época de Leonardo. Pensei outra vez a respeito de aproximações entre artes e ciências no período em questão e de novos valores dados às artes, no sentido amplo de saberes produtivos sistematizados, os quais tornavam possível um artífice como Leonardo executar uma obra cara e sofisticada como aquela. Recordei o Duomo de Florença, feito em uma época de misérias que talvez não consigamos imaginar, feito justamente por causa de sofrimentos em meio a esperanças de vidas melhores. Pensei também a respeito de questões formais como historiador da arte, especialmente o arco da pintura italiana que começou com Giotto, passou por Masaccio e teve em Leonardo o primeiro grande expoente da “terza maniera che noi vogliamo chiamare la moderna”, como escreveu Giorgio Vasari em 1550. Recordei Leon Battista Alberti e sua preceptiva a respeito dos “moti dell’anima”, e vi colegas observando a beleza daquela obra; que absurdo estar ali, pensei, vendo uma pintura feita para devoção em um mundo que esperava salvação, mas que hoje é admirada apenas por ser bela. Como desenhista, observei partes da pintura tendo como background minha prática de desenhar, e pensei a respeito de refinar meus gostos e de milhares de desenhos a fazer, desenhos sem função alguma. Sendo um materialista desencantado, pensei, resta-me seguir Francis Bacon: “I think that, if one could find a valid myth today where there was the distance between grandeur and its fall of the tragedies of Aeschylus and Shakespeare, it would be tremendously helpful. But when you’re outside a tradition, as every artist is today, one can only want to record one’s own feelings about certain situations as closely to one’s own nervous system as one possibly can.”

Em meio a pessoas diversas, esses pensamentos se alternavam rápida e repetidamente, e pensei que o mundo está “tudojuntomisturado”, como diz uma amiga paulistana, e desencadeia em nós pensamentos assim, todosjuntosmisturados. Resta elaborar e desenvolver métodos para classificar e organizar partes de nossas experiências, e então perceber e entender relações entre essas partes.

II. Na época de doutorado, li e reli Ludwig Wittgenstein ao comparar nossa língua a uma cidade velha: “Nossa língua pode ser vista como uma velha cidade: um labirinto de pequenas ruas e praças, velhas e novas casas, e casas com adições de vários períodos; e isso é circundado por uma imensidão de novos bairros com ruas retas e casas uniformes.” Pensei essa imagem em um continuum temporal, que fez parte de um texto um tanto especulativo que escrevi naquela época.

Hoje, penso que nossa língua pode ser vista como uma cidade que se origina a partir de um pequeno labirinto de pequenas ruas, praças e casas. Ao crescer, certas adições talvez tenham origens antigas e funções diversas de suas funções originais, e as partes da cidade que são destruídas determinam as adições colocadas a seguir, fazendo da cidade “um labirinto de pequenas ruas e praças, velhas e novas casas com adições de vários períodos”. A cidade cresce a partir do encontro desse núcleo em expansão com outros núcleos, progressivamente interligados por ruas e avenidas que os unem entre si, algumas das quais são retas e uniformes, outras talvez nem tanto, fazendo a cidade velha ser uma espécie de bricolage de processos intrincados (no sentido de que se reforçam mutuamente) e acidentais (no sentido que não se pode prevê-los). Eventualmente, algumas cidades são feitas de ruas retas e casas uniformes previamente planejadas, mas as formas de vida que fazem cidades continuamente renovam-nas, fazendo-as também bricolages intrincadas e acidentais.

As adições de vários períodos posteriores fazem cidades contemporâneas serem mais velhas do que as cidades velhas do passado. Assim, no caso da civiltà em que Leonardo da Vinci nasceu e viveu, restam fragmentos, e esses fragmentos estão alterados. No caso da Adoração dos Magos, Leonardo a começou para ser usada em serviços religiosos, mas resta inacabada e está em parte consumida pelos séculos na Galleria degli Uffizi, ou seja, um museu de obras de arte.

Línguas crescem como cidades velhas, línguas crescem em cidades velhas. Línguas são como “um labirinto de pequenas ruas e praças, velhas e novas casas, e casas com adições de vários períodos”, bricolages intrincadas e acidentais formadas ao longo de séculos de história. Basta recordar palavras antigas de múltiplos sentidos como “philosophia” para entender isso.

III. Hoje, passei o dia em Ravenna pensando a respeito deste post. Por exemplo, a Basilica di San Vitale tem elementos romanos e bizantinos, por exemplo, e a decoração em mosaicos do século VI está acompanhada de afrescos do século XVIII, tudojuntomisturado. Aliás, San Vitale funciona como museu de arte, e não sei se serviços religiosos ainda são feitos lá. Como fazer, caso se queira entendimento histórico de um monumento como esse? Nos últimos anos, tenho pensado a respeito de restaurar, assunto de que tratei logo no início deste blog e do qual escreverei amanhã ou depois de amanhã, com a imagem da obra de Leonardo restaurada.

La fabrica delli strumenti

Galileu Galilei e Marcantonio Mazzoleni. Compasso geométrico-militar. Latão, 25,6 cm x 36.0 cm (aberto), circa 1606. Museo Galileo, Florença.

La fabrica delli strumenti

Eduardo Kickhöfel

I. O grupo de estudos La fabrica delli strumenti está baseado sobre as linhas gerais de minhas investigações que descrevo no post anterior, ou seja, fazer história da filosofia ou história do conhecimento a partir do estudo sistemático de vocabulários, conceitos e questões amplas do Renascimento. O foco do grupo visa estudar como Galileu Galilei aproximou artes e ciências – nos sentidos amplos de saberes práticos e saberes teóricos – em diversos modos, sugerindo interesses mútuos e inéditos entre homens práticos e teóricos característicos da época em que vivia.

II. Esbocei o projeto do grupo de estudos quando eu morava na Itália, entre 2014 e 2015, época em que organizei de modo inédito meus estudos acadêmicos. Eu esboçara um framework para estudar o amplo processo de reorganização dos saberes ocorrido aproximadamente entre os séculos XIV e XVII, que resultou na formação do mundo moderno. Leonardo da Vinci era nodo desse processo, não obstante o conhecido fato que suas investigações de filosofia natural não fizeram parte da formação da nova ciência dos modernos. Galileu era outro nodo importante, e pouco a pouco eu pensava sua obra como objeto central de minhas investigações históricas. Certo, eu já havia feito cursos a respeito da nova física do matemático pisano, mas agora sua obra ganhava uma dimensão nova em meus estudos. Após voltar ao Brasil, em meio a cursos, entre os quais Ars proprium humanitatis, que publiquei parcialmente neste blog, voltei àquele projeto. Por acaso e felicidade, encontrei alunos interessados em questões de um período da história da filosofia ainda pouco estudado, ao menos em relação a outros períodos. Além disso, em um meio acadêmico conhecidamente hostil às ciências naturais e um tanto pessimista, desde então eles se mostram abertos e curiosos à perspectiva de mundo científica e otimista que expresso, e inclusive aqui e ali falamos a respeito de questões contemporâneas derivadas da ciência dos modernos.

III. Galileu foi um dos personagens mais significativos na passagem do século XVI ao século XVII. Em seus anos em Pádua, ocorridos entre 1592 e 1610, ele escreveu um pequeno tratado de mecânica, que mostra que desde o início de sua carreira como professor de matemática ele teve interesses em aproximar conhecimentos teóricos e práticos, transformando as artes mecânicas na ciência mecânica para construir máquinas simples que tinham fins úteis. Nessa época, ao fazer experimentos, isto é, artifícios construídos para testar hipóteses, Galileu aproximava artes mecânicas, física e matemática. Ele publicaria suas ideias apenas em 1638 nos Discorsi e dimostrazioni matematiche intorno a due nuove scienze (Discursos e demonstrações matemáticas acerca de duas novas ciências), livro que trata dos usos de artes e ciências para os fins da vida civil, especialmente a “scienzia nuova intorno alla resistenza de i corpi solidi all’essere spezzati” (“a ciência nova acerca da resistência dos corpos sólidos ao serem rompidos”) e suas causas, que ultrapassava as artes mecânicas um tanto aproximativas dos tratados anteriores. Galileu também apresenta a ciência “dei movimenti locali, cioè dell’equabile, del naturalmente accelerato” (“dos movimentos locais, isto é, do [movimento] uniforme e do [movimento] naturalmente acelerado”), ou seja, os princípios da dinâmica e da aceleração uniforme, e “del violento, o vero de i proietti” (“do [movimento] violento, ou dos projéteis”), isto é, a primeira teoria matemático-geométrica aplicada a projéteis. Até então, ciências em sentido estrito, isto é, ciências demonstrativas, estavam voltadas a discussões teóricas afastadas de questões práticas, e em grande parte eram feitas a partir de leituras, interpretações e infindáveis controvérsias em torno de textos aristotélicos. Agora, as novas ciências dependiam de artes mecânicas, que eram tornadas ciências mecânicas ao serem tratadas matematicamente e terem consequências práticas, as quais podiam ser avaliadas por sua utilidade e eficiência. Galileu mostrava de modo claro a atitude não mais contemplativa, mas ativa do homem face à natureza típica do período em questão, continuando os esforços de Leonardo da Vinci e Niccolò Tartaglia, entre tantos outros. Leonardo, de fato, escrevera que “la meccanica è il paradiso delle scienze matematiche, perchè con quella si viene al frutto matematico” (“a mecânica é o paraíso das ciências matemáticas, pois com ela se chega ao fruto da matemática”), e Tartaglia, no prefácio de seu General trattato di numeri et misure (Tratado geral de números e medidas), dissera de modo um tanto ambíguo que “che quanto piu la parte speculatiua ecceda di nobilta la parte operatiua, tanto piu la parte operatiua ecceda, non solamente di utilita, la parte speculatiua, ma anchora di laude, perche, como dice M. Tullio nel primo de officis, ogni laude della uirtu consiste nell’attione, ouer operatione” (“quanto mais a parte especulativa exceda em nobreza a parte operativa [da filosofia], tanto mais a parte operativa excede a parte especulativa não somente em utilidade, mas ainda em louvores, porque como disse Marco Tulio [Cícero] no primeiro livro Dos ofícios, todo o louvor da virtude consiste na ação ou operação”). Parafraseando um famoso filósofo, as mecânicas sem a mecânica são cegas, e mecânica sem as mecânicas é vazia.

Ainda em Pádua, Galileu também se ocupou da construção de instrumentos, entre os quais o compasso geométrico-militar, instrumento que servia para cálculos de operações geométricas e aritméticas usando proporções entre lados homólogos de dois triângulos semelhantes, apontando outra vez para fins úteis. Também ao aperfeiçoar a luneta em 1609, Galileu aproximou artes mecânicas e óptica geométrica. Não se sabe se Galileu utilizou conhecimentos teóricos ou aperfeiçoou a luneta por tentativa e erro, mas na época já existiam teorias que explicavam como a luneta funcionava, especialmente em obras de Johannes Kepler, dando assim razões para as novas observações. De qualquer modo, ele a ofereceu à Sereníssima República de Veneza por sua utilidade, e então utilizou-a como um instrumento para fazer observações controladas e sistemáticas dos céus, conforme ele relata no Sidereus nuncius, abrindo caminho para a dissolução das concepções antigas a respeito do cosmos e para a defesa do copernicanismo. Aliás, ao ilustrar o Sidereus nuncius Galileu também aproximou artes do desenho e da estampa à nova física dos céus, seguindo uma tradição de ilustrações para filosofia natural que começara também no século XV na Itália. Por fim, após o Sidereus nuncius, Galileu publicou sobretudo em italiano, aproximando a arte da retórica e a nova física, em especial no Dialogo sopra i due massimi sistemi del mondo (Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo), criando um gênero novo que foi aptamente chamado por Tommaso Campanella de “commedia filosofica”. Em suma, Galileu soube concentrar em suas obras lições de filósofos, humanistas e artífices do período, mostrando como naquele período diversas formas de conhecimentos práticos e teóricos podiam existir conjuntamente e, assim, formar o mundo moderno.

O nome La fabrica delli strumenti vem do começo do pequeno tratado a respeito do compasso geométrico-militar, publicado em 1606, que Galileu produzia em sua oficina. No prefácio, após escrever a respeito dos, “preziosi frutti di queste scienze [matematiche] per l’uso civile e militare” (“preciosos frutos dessas ciências matemáticas para uso civil e militar”), Galileu diz:

Aggiugnesi che il tacere io la fabrica dello Strumento, la quale per la lunga e laboriosa sua descrizione e per altri rispetti al presente pretermetto, renderà questo trattato del tutto inutile a chi senza lo Strumento ei pervenisse nelle mani. E per tal causa ne ho io fatte stampare appresso di me 60 copie sole, per presentarne insieme con lo Strumento.

Adicione-se que se eu parasse a fábrica do Instrumento, a qual por longa e laboriosa descrição e por outras questões evito, faria este tratado de todo inútil a quem sem o instrumento ele caísse em mãos. E por esta razão publiquei aqui apenas 60 cópias para apresentar junto com o instrumento.

A palavra “strumento” vem do latim “instrumentum”, que significa instrumento, implemento, utensílio ou ferramenta, que por sua vez vem do verbo “instruo”, construir, edificar e elevar, e também organizar, prover e ensinar. Aqui, tomo liberdade de expandir o sentido de “strumento” para “instrumentos de conhecer”. Galileu forneceu não apenas um instrumento específico para fazer cálculos, mas também novos instrumentos experimentais e matemáticos para conhecer e operar. Tendo isso, o grupo visa pensar formas de conhecimento práticas e teóricas e suas relações, questão própria do Renascimento e superfície de questões ainda mais amplas, ou seja, o background cívico-religioso que descrevo brevemente no post anterior, que de resto vinha dos antigos. Não custa lembrar o fundo em questão, ou seja, que “we are bodies born from other bodies, bodies feeding other bodies, bodies having sex with other bodies etc.”, que de um modo ou de outro um dia será central em meus estudos. Aliás, no fim da primeira jornada do Diálogo, após discutir questões a respeito da perfeição dos céus defendida por filósofos aristotélicos como Simplício, Sagredo faz um comentário surpreendente:

Questi che esaltano tanto l’incorruttibilità, l’inalterabilità, etc., credo che si riduchino a dir queste cose per il desiderio grande di campare assai e per il terrore che hanno della morte; e non considerano che quando gli uomini fussero immortali, a loro non toccava a venire al mondo. Questi meriterebbero d’incontrarsi in un capo di Medusa, che gli trasmutasse in istatue di diaspro o di diamante, per diventar piú perfetti che non sono.

Estes que exaltam tanto a incorruptibilidade, a inalterabilidade etc., creio que se limitam a dizer essas coisas por grande desejo de viver muito e pelo terror que têm da morte; e não consideram que, se os homens fossem imortais, a eles não caberia vir ao mundo. Estes mereceriam encontrar uma cabeça de Medusa, que os transformasse em estátuas de jaspe ou diamante para torná-los mais perfeitos como não são.

IV. O grupo de estudos de que fiz parte na época de doutorado tinha um projeto que esboçava ideias amplas a respeito de história e filosofia da ciência. Entretanto, o projeto não contemplava estudos sistemáticos a respeito de vocabulários, conceitos e questões dos períodos que propunha tratar. Falava-se palavras como “ciência” e “filosofia” sem especificar os conceitos a que se referiam conforme fontes de época, e falava-se anacronicamente de artistas e cientistas na época de Galileu. Além de desconhecimento de fontes, os anacronismos tinham origem na falta de distinção entre filosofia e história da filosofia, assunto que, tanto quanto recordo, não era discutido. As reuniões periódicas serviam para discutir textos de história e filosofia da ciência e também textos de participantes do grupo. Funcionava, mas cada qual seguia sua própria pesquisa. Isso me fazia pensar a respeito de como pesquisas em humanidades eram solitárias e ineficientes.

Proponho estudar diversamente. Primeiro, seguindo as linhas gerais descritas no post anterior, no ano passado lemos e traduzimos diversos prefácios para conhecer e incorporar vocabulários da época que estudamos em nossos modos de pensar, falar e escrever. Neste ano, continuaremos a dar passos para trás, por assim dizer, para avançar. Chamar Leonardo da Vinci de artista e Galileu de cientista não causa espanto, mas de artífice e filósofo sim, pois talvez faça pensar que eles faziam parte de um mundo significativamente diverso de nosso mundo contemporâneo. A premissa básica talvez seja surpreender-se lendo palavras comuns usadas de muitos modos cotidianamente. Vale dizer que há um ano apenas tirei a palavra “cultura” de meus textos históricos. Hoje, escrevo “civiltà”, palavra italiana do século XIII que remete a tradições, ideias, organizações políticas e conjunto de valores de um povo em um dado território, sobretudo citadino, como sugere a palavra “civitas” na origem de “civiltà”. “Urbanidade” talvez seja uma boa opção para traduzir “civiltà”, pois remete a “urbs”, ou melhor, ao estado de ser urbano ou citadino de um dado povo em oposição ao campo. Entretanto, neste momento mantenho a palavra italiana “civiltà” grafada em itálico. Não obstante proximidades entre civiltà e cultura, assim evito referências a dois conceitos vindos do século XIX formulados por Matthew Arnold, em Culture and Anarchy, e Edward Burnett Tylor, em Primitive Culture. Segundo, tendo vocabulários, conceitos e questões comuns, podemos aproximar pesquisas de modo inédito. Assim, quem estuda questões a respeito dos artífices do século XV, por exemplo, relaciona-se diretamente com quem estuda questões mecânicas que esta na obra de Galileu. Aliás, quando vejo os relevos do Campanile em Florença, que celebram publicamente as diversas artes que faziam a Florença de meados do século XIV, em geral estudados por historiadores da arte, faço relações diretas com questões galileanas, em geral tratadas por historiadores e filósofos da ciência. Temos montado uma cultura comum, no sentido de nossos modos de pensar, falar e escrever. As linhas gerais do grupo visam simplificar e tirar obstáculos acadêmicos, que não raro atrapalham leituras de fontes. Terceiro, se temos um ponto de partida relativamente original, também temos um ponto de chegada. Considero editar um livro daqui a quatro ou cinco anos que terá textos escritos pelos participantes do grupo, do qual serei editor junto com dois ou três colegas. Paralelamente, penso a respeito de uma página na internet para apresentar e discutir questões, fazer entrevistas com colegas, manter bibliografias atualizadas e muito mais. Talvez assim sejamos menos solitários e mais eficientes em nossos estudos acadêmicos.

Neste momento, temos pesquisas a respeito de artífices no século XV, de Leonardo da Vinci como anatomista e como artífice de máquinas, Copérnico e a “nova razão do mundo”, duas pesquisas a respeito de Benedetto Varchi e outra a respeito da luneta de Galileu. Temos ainda diversas lacunas nas áreas que espero tratar, como um estudos a respeito dos relevos do Campanile de Florença, de Niccolò Tartaglia e de questões galileanas. Espero em breve receber novos alunos.

V. O grupo de estudos funciona como uma espécie de “experimento” para elaborar conceitos e questões amplas do período em torno de Galileu, base das pesquisas específicas de cada um. Nesse sentido, estudar conceitos e questões amplas talvez seja como encontrar pontos de referência e o desenho amplo do mapa da cidade em que se está, de modo que se possa se mover através dela seguramente, ou no mínimo sem errar repetidamente. Sendo preciso, estudar conceitos e classificações de saberes visa definir conceitos básicos e suas relações, e também relações entre eles e conceitos subordinados. Conceitos básicos apontam para questões amplas de um dado período, que por sua vez articulam conceitos e questões específicas. Imagino que quem me lê não coloca isso em questão. Estar perdido em uma cidade qualquer incomoda, pois nossa sobrevivência imediata fica ameaçada e restringimo-nos a poucos caminhos já conhecidos. Semelhantemente, não entender palavras que percebemos como centrais para entender questões que consideramos importantes nos deixa pouco capazes de reagir e interagir, e fechamo-nos intelectual e afetivamente.

Inovar requer esforços contínuos e aceitação contínua de erros. Além disso, os contextos sociais em que vivemos funcionam em redes que resistem a mudanças. Como diz o neurocientista Olaf Sporns, “networks are examples of complex systems, with highly structured connectivity patterns, multiscale organization, nonlinear dynamics, and the capacity for self-organization that gives rise to collective or group phenomena”, que são “resilient to external challenges”. Os processos em questão são imbricados uns nos outros, e mudanças em um de seus elementos automaticamente desencadeia resistências em diversos outros. Mudar requer mudanças coordenadas entre si para que elas próprias sejam viáveis. No momento, o tipo de pesquisa que fazemos não tem um nicho acadêmico próprio, e talvez não seja estranho que quem a coordena é por um tipo que veio a ser professor de filosofia um tanto ao acaso. Entretanto, parece que faz algum sentido, sobretudo devido ao uso sistemático e metódico que fazemos de fontes de época.

Temos um vasto campo a explorar, e diversão erudita não nos faltará nos próximos anos. Há poucos dias li uma matéria divertidíssima a respeito de entropia chamada Entropy Explained, with Sheep, do físico e divulgador Aatish Bhatia. Em seu perfil no Twitter, ele diz: “Trying to make the most of a brief time in a wondrous universe.” Aliás, isso não é frase que professor de filosofia cita, certo?

De Florença

Círculo de Bernardo Daddi. Madona da Misericórdia: Detalhe mostrando Florença. Afresco, 1342. Loggia del Bigallo, Florença.

De Florença

Eduardo Kickhöfel

I. Academicamente, o ano passado foi ótimo devido a elaboração inédita de certas ideias, especialmente no segundo semestre. Estou no fim de uma longa pesquisa que dura mais de quinze anos, que visa editar os estudos de anatomia de Leonardo da Vinci, e no começo de um projeto que inclui ciências naturais chamado Brain, Knowledge and Culture, que talvez me acompanhe até o fim de meus dias. Pessoalmente, sofri duas grandes perdas, a segunda mais intensa do que a primeira, mas espero que de ambas eu tenha aprendido noções importantes a respeito de minha vida. Entre mortes inevitáveis e amores perdidos, penso diariamente, estão as questões mais importantes. Adicione-se a isso minha usual desorganização e falta de senso prático, e eis este blog abandonado de novo. Shame on me!

II. Estou em Florença outra vez, agora para terminar artigos e minha edição dos estudos de anatomia de Leonardo da Vinci. Após vinte anos de estudos, consigo definir as linhas gerais de minhas investigações. Eis um resumo de como elaboro um framework para entender Leonardo e, tema de meu atual grupo de estudos, Galileu Galilei.

Primeiro, como já escrevi aqui, faço distinção entre filosofia e história da filosofia. Quando se estuda fontes de época, existem duas opções principais. A primeira visa fazer história da filosofia, ou seja, estudar fontes considerando vocabulários, conceitos e questões do contexto em que tais e tais fontes foram escritas. Esta é a tarefa de acadêmicos, e talvez assim eles possam supor como tais e tais filósofos pensaram tais e tais questões em seus respectivos períodos históricos. A segunda visa fazer filosofia, ou seja, estudar fontes para pensar vocabulários, conceitos e questões da época em que se estuda tais e tais fontes. Esta é a tarefa de filósofos, que visam pensar explicitamente questões de seus próprios períodos. Para que isso fique claro, recordo livros como The Cambridge Companion to Galileo, editado por Peter Machamer, e Die Krisis der europäischen Wissenschaften und die transzendentale Phänomenologie, de Edmund Husserl. Os acadêmicos que escreveram o The Cambridge Companion estavam interessados entender a formação da nova física, mas ao escrever Die Krisis Husserl considerava questões a respeito da ciência moderna na Europa pouco antes da Segunda Grande Guerra. Sendo preciso, não existe distinção clara e distinta entre história da filosofia e filosofia. Ernst Cassirer fez história da filosofia tingida por sua filosofia neokantiana, e fez sua filosofia neokantiana a partir do vasto conhecimento que tinha da história da filosofia (e tantos outros conhecimentos). Em uma espécie de terceira via, Cassirer fez interpretações filosóficas da história da filosofia. Entretanto, e não obstante inúmeros outros matizes, a distinção entre história da filosofia e filosofia torna claros vocabulários, conceitos e questões de nossos próprios estudos. Em meu caso, viso fazer história da filosofia, embora hoje eu me pense como historiador das ideias, como explico a seguir, e por hora divido minhas especulações privadamente. Seja como for, sei que sou inevitavelmente anacrônico em relação ao período que estudo, e recordo aqui Nikolaus Harnoncourt a respeito de interpretações históricas de música barroca: “Certes nous ne savons pas exactement comment c’était, mais nous savons très exactement comment ce n’était pas.” Eis um bom começo, certo?

Segundo, parto de definições de termos básicos para que eu pense, fale e escreva sem incômodas sensações de ter notas de rodapé vazias. Busco saber como uso certas palavras centrais em certos discursos para que eu saiba a que conceitos fazem referência. Não proponho novidade alguma, de fato, mas apenas sigo autores do período que estudo. Por exemplo, eis uma passagem do Libro della vita civile, escrito por Matteo Palmieri por volta de 1430 (Palmieri, 1529, p. 28v): “Tosto si conoscerà il primo segno dell’animo bene composto essere stare fermo, & seco medesimo non deuiando da i primi ingegni, considerare, et riuolgere i termini fondamentali di qualunche scienza, o, arte, & a quegli con ogni decto & facto, conrispondere, sappiendo che ogn’altra uia è uaga, & instabile, & sanza fructo.” (“Rápido conhecer-se-á o primeiro sinal de uma alma bem composta quando ela está firme e consigo mesma, não desviando dos primeiros engenhos, se ela considera e volta-se aos termos fundamentais de qualquer ciência ou arte, a cada dito e fato correspondendo, e sabe que qualquer outra via é vaga, instável e sem fruto.”) Benedetto Varchi, no começo da segunda das Due lezzioni, publicadas em 1549, escreve (Varchi, 1859, p. 628): “In ciascuna disputa si debbe la prima cosa, per fuggire l’equivocazione e scambiamento dei nomi, dichiarare i termini principali.” (“Em cada disputa se deve, para fugir a equívocos e trocas de nomes, declarar os termos principais.”)

Terceiro, uso divisões da filosofia escritas e publicadas na época. Palavras remetem a conceitos, que por sua vez remetem a divisões de conhecimentos mais ou menos explícitas. Busco relações entre formas de conhecimento, sobretudo artes e ciências. Por exemplo, em um texto chamado Dei prolegomeni o precognizioni, Varchi (1859, p. 808) escreve: “Se la filosofia ha per obbietto tutto l’ente, cio è comprende tutte le cose di tutto l’universo, chiara cosa è che non si può ritrovare cosa alcuna in luogo veruno, la quale non caggia sotto la Filosofia; la quale fu divisa da alcuni in tre parti, da alcuni in due. Ma perchè cotale divisione è stata fatta e dichiarata da noi più volte, ci rimetteremo a quelle divisioni, e diremo solamente, che nel principio di tutte l’opere, si deve dichiarare se la materia che in cotal libro si tratta è scienza o arte.” (“Se a filosofia tem por objeto todo o ente, isto é, compreende todas as coisas do universo, clara coisa é que não se pode encontrar em lugar nenhum alguma coisa que não esteja sob a Filosofia, a qual foi dividida por alguns em três partes, e por outros em duas. Mas porque tal divisão foi feita e declarada por nós diversas vezes, remetemo-nos àquelas divisões, e aqui dizemos apenas que, no princípio de todas as obras, se deve declarar se a matéria de tal livro trata de ciência ou arte.”)

Quarto, considero questões amplas do período em questão. Dou especial atenção a novos valores dados à vita activa e às artes, em oposição à vita contemplativa dos antigos e, principalmente, medievais. Naquele contexto histórico, aproximações entre artes e ciências foram centrais, de Francesco Petrarca a Galileu Galilei.

Em princípio, faço história da ciência. Ao menos, assim se fala em departamentos de filosofia, talvez para separar história da ciência e história da filosofia. Entretanto, desse modo assume-se uma distinção entre ciência e filosofia que não existia no Renascimento. Posso pensar que faço história da filosofia, especificamente, história da filosofia natural. Entretanto, a palavra “filosofia” no Renascimento era usada no sentido de conhecimento, como diz Gregor Reisch em seu livro Margarita philosophica (1503, f. 4v): “Philosophia est divinarum humanarumque rerum cognitio cum studio bene vivendi coniuncta.” (“Filosofia é conhecimento das coisas divinas e humanas juntamente com o estudo do bem viver.”) Hoje, não custa escrever, usa-se a palavra “filosofia” para denotar conjuntos de doutrinas de certos filósofos (filosofia aristotélica e filosofia kantiana), tradições históricas consolidadas (filosofia grega e filosofia moderna) e escolas (filosofia analítica e filosofia continental). Se faço história da filosofia no sentido em que filosofia era compreendida na época, receio não ser compreendido como quero, justamente porque em geral assume-se tacitamente sentidos contemporâneos de filosofia. Talvez eu faça história das ideias, mais abrangente que a história da filosofia, embora história do conhecimento soe um tanto neutra e talvez sirva a meus presentes propósitos.

III. Estudo relações entre artes e ciências, nos sentidos amplos de conhecimentos teóricos e conhecimentos práticos. Entretanto, sei que esses conceitos existiam em função de um background cívico-religioso. Escrevo a seguir exemplos de Florença, mas as palavras a seguir valem para outras cidades italianas do período. Em relação a questões religiosas, artífices erguiam igrejas e pintavam afrescos, descrevendo histórias e doutrinas sagradas, como mostra o imenso corpus de pinturas, esculturas e outros objetos feitos durante o Renascimento. Eles também celebravam diretamente a vida religiosa da cidade, como no caso do afresco La Chiesa militante e trionfante, executado entre 1365 e 1367 por Andrea da Bonaiuto no Cappellone degli Spagnoli da basílica de Santa Maria Novella. Em relação a questões cívicas, artífices construíam e decoravam palazzi, como mostram inúmeros edifícios renascentistas em Florença. Eles também celebravam diretamente a vida cívica da cidade, como sugerem as encomendas das pinturas a Leonardo da Vinci e Michelangelo no começo do século XVI para decorar a Sala del Gran Consiglio do então Palazzo della Signoria, respectivamente a Battaglia di Anghiari e a Battaglia di Cascina. A partir de um certo momento, certas artes foram sistematizadas com elementos de certas ciências, como por exemplo a arte da pintura no começo do século XV por Filippo Brunelleschi e Leon Battista Alberti, e as mecânicas no século seguinte por Niccolò Tartaglia e Guidobaldo del Monte, entre outros matemáticos. Usos religiosos e políticos da retórica, uma arte desde os antigos, faziam parte desse contexto. Aliás, ciências não só sistematizavam artes, mas também davam fundamentos a questões religiosas. Na tradição tomista, por exemplo, a teologia era uma ciência em sentido demonstrativo. Nos termos da partição da filosofia de Gregor Reisch, a parte divinamente inspirada da filosofia precisava da parte humanamente conquistada, entre outras. Suspeito que o eixo central era sobretudo religioso, como sugere o afresco Il Trionfo di San Tommaso d’Aquino no Cappellone e as divisões da filosofia já mostradas neste blog. De qualquer modo, naquela época vida religiosa e vida cívica estavam intimamente relacionadas. No centro religioso da cidade, os relevos do Campanile celebram artes e ciências tanto religiosas como cívicas. A narrativa começa com a criação de Adão, e após seguem-se as artes e ciências que, efetivamente, faziam Florença em meados do século XIV. No Duomo, estão afrescos de Paolo Uccello e Andrea del Castagno que celebram John Hawkwood e Niccolò da Tolentino, respectivamente, condottieri que serviram a República Florentina. No centro cívico de Florença, por sua vez, lê-se sobre a porta principal do Palazzo Vecchio YHS Rex Regum et Dominus Dominantium, colocada por ordens de Cosimo I de’ Medici em 1551, duque da Toscana, em substituição a uma inscrição prévia de Girolamo Savonarola, que possivelmente dizia Jesus Christus rex florentini populi S.P. decreto electus. O melhor exemplo talvez seja Orsanmichele, originalmente uma loggia que servia como mercado de grãos erguido por Arnolfo de Cambio por volta de 1290, que logo se tornou lugar de devoção devido a uma imagem da Virgem pintada sobre um de seus pilares. Após um severo incêndio, a loggia foi reconstruída em entre 1337 e 1349. Tendo um imenso altar, por volta de 1357 a loggia não podia mais funcionar como mercado, que foi transferido para outro lugar, e por volta de 1380 foi fechada para ser a igreja tal qual existe hoje e, supreendentemente, dois andares foram adicionados para servir como armazém de grãos para épocas de fome e cercos. Pronta em 1404, Orsanmichele foi decorada por tabernáculos que representam os santos das principais corporações, sendo um monumento cívico-religioso único em Florença. Por hora, minhas pesquisas a respeito de Leonardo e Galileu não requerem que eu investigue esse background em detalhes, mas um dia talvez eu tenha de ver o leão de frente. Talvez, mas tenho lentamente me direcionado para outras questões, inclusive visualizar relações entre formas de conhecimento utilizando recursos digitais.

IV. Visito igrejas diariamente, e cada uma delas me sugere pensamentos específicos. Entretanto, penso principalmente a respeito das coisas que homens fazem porque não querem morrer, porque querem amar. Os homens do passado fizeram coisas não apenas diretamente úteis como alimentos, roupas e abrigos. Eles inventaram mitos de criação do mundo e de si próprios, e contaram histórias de homens que ressuscitaram e santos que sofreram martírios atrozes; elaboraram ritos e ofícios religiosos, escreveram teologias e suas infindáveis controvérsias; fizeram pinturas e esculturas, músicas e poemas dos mais diversos tipos. As sepulturas, mais ou menos ornamentadas, mostravam o fim óbvio de cada um, mas também apontavam para anseios por salvação individual e pelo amor de uma divindade que as protegia e que perdoava seus pecados. Quando estou em Santa Maria del Fiore, penso que erguer aquela igreja requeria muitas artes e ciências em um contexto cívico-religioso único, que só ocorreu nesta cidade. Então, tento imaginar quanto sofrimento e quanta esperança estão lá depositados, quantos medos de morrer e desejos por amar. Lá, recordo frequentemente o Cantus in Memory of Benjamin Britten, de Arvo Pärt, e às vezes meus olhos ficam cheios de lágrimas. “Love is a sunshine mixed with rain”, escreveu Sir Walter Raleigh. Também vejo turistas que seguem obedientemente seus guias, fazendo fotos tolas de objetos que possivelmente não entendem. Talvez busquem formas de beleza, talvez restos de ilusões de eternidade sem o saber. Então, penso a respeito de meus esforços, talvez tão tolos quanto aquelas fotos, e recordo de que um dia morrerei, mas que antes disso quero amar. Há alguns anos, leio livros de primatologia, e Frans de Waal, em Our Inner Ape, acerta a questão básica: “The reality is that we are bodies born from other bodies, bodies feeding other bodies, bodies having sex with other bodies, bodies seeking a shoulder to lean or cry on, bodies traveling long distances to be close to other bodies, and so on. Would life be worth living without these connections and the emotions they arouse?” A vida é curta, e a cada dia que passa penso a respeito de organizar meus estudos em torno de questões básicas como essas, estudos não só de história das ideias e de ciências naturais, mas também das palavras de grandes poetas.

V. Isto posto, neste mês publicarei aqui os resumos dos dois projetos em que estou envolvido. O primeiro diz respeito a meu grupo de estudos a respeito de Galileu, que está ativo há mais de um ano. O segundo, uma derivação surgida em discussões, trata de uma edição de prefácios renascentistas. A partir de março, se meus planos correrem como imagino, publicarei notas de um curso a respeito de Copérnico e a “nova razão do mundo”. Aliás, recentemente participei de uma entrevista a respeito da revolução copernicana que em breve estará disponível na página Estado da Arte.