Gerhard Richter

Eduardo Kickhöfel

Recebi duas mensagens comentando de modo positivo o texto de Gerhard Richter que cito no post anterior. Richter é sobretudo um pintor, mas eventualmente escreve notas que são publicadas em catálogos e coletâneas. O texto do post anterior vem do catálogo de sua retrospectiva ocorrida entre 1991 e 1992 na Tate Gallery. Citei palavras de Richter pensando que elas sugerem pensar um dos sentidos da filosofia para os antigos. Leiamos Jean-Pierre Vernant a respeito disso:

A filosofia vai encontrar-se, pois, ao nascer, numa posição ambígua: em seus métodos, em sua inspiração, aparentar-se-á ao mesmo tempo às iniciações dos mistérios e às controvérsias da ágora; flutuará entre o espírito de segredo próprio das seitas e a publicidade do debate contraditório que caracteriza a atividade política. Segundo os meios, os momentos, as tendências, ver-se-á que, como a seita pitagórica na Grande Grécia, no século VI, ela organiza-se em confraria fechada e recusa entregar à escrita uma doutrina puramente esotérica. Poderá também, como fará o movimento dos Sofistas, integrar-se inteiramente na vida pública, apresentar-se como uma preparação ao exercício do poder na cidade e oferecer-se livremente a cada cidadão, mediante pagas a dinheiro. Dessa ambiguidade que marca sua origem, a filosofia grega talvez jamais se tenha libertado inteiramente. O filósofo não deixará de oscilar entre duas atitudes, de hesitar entre duas tentações contrárias. Ora afirmará ser o único qualificado a dirigir o Estado, e, tomando orgulhosamente a posição do rei-divino, pretenderá em nome desse “saber” que o eleva acima dos homens, reformar toda a vida social e ordenar soberanamente a cidade. Ora ele se retirará do mundo para recolher-se numa sabedoria puramente privada; agrupando em torno de si alguns discípulos, desejará com eles instaurar, na cidade, uma cidade diferente, à margem da primeira e, renunciando à vida pública, buscará sua salvação no conhecimento e na contemplação.

Em Aristóteles, o sentido de salvação prevaleceu, pois a sabedoria mais elevada era afastada das sensações e das necessidades, como está no segundo capítulo do primeiro livro da Metafísica:

Assim testemunham os próprios acontecimentos: por assim dizer, essa sabedoria começou a ser buscada quando já se encontravam satisfeitas todas as necessidades concernentes à facilitação e ao divertimento. É evidente, então, que a buscamos não devido a outra utilidade, mas, tal como dizemos que é livre o homem que é em vista de si mesmo e não é de outro, do mesmo modo dizemos que apenas ela, entre os conhecimentos, é livre, pois apenas ela é em vista de si mesma.

E ainda Aristóteles: “E todos os outros conhecimentos são mais necessários que ela, mas nenhum é melhor.” Pouco após, no primeiro capítulo do segundo livro da Metafísica, Aristóteles também fala claramente: “Também é correto denominar a filosofia como ‘ciência da verdade’. O fim da ciência teórica é a verdade, e, da ciência prática, é a ação. De fato, se os que sabem agir também investigam de que modo as coisas se dão, estudam-nas não como eternas, mas em relação a algo e agora.” Naquele contexto, os conhecimentos operativos – as artes – tinham menor valor do que as ciências porque visavam práticas e produções e no mundo da geração e corrupção. Como escrevi em um post deste blog, no Renascimento essa postura continuava, não obstante o novo valor dado às artes. Em certos círculos, as hierarquias de saberes dos antigos estavam presentes, como diz Benedetto Varchi em um texto publicado em 1549: “Tutte le scienze, essendo nella ragione superiore et avendo più nobile fine, cioè contemplare, sono senza alcuno dubbio più nobili di tutte l’arti, le quali sono nella ragione inferiore et hanno men nobile fine, cioè operare.” (“Todas as artes, sendo parte da razão superior e tendo fim mais nobre, isto é, contemplar, são sem dúvida alguma mais nobres do que todas as artes, as quais estão na razão inferior e tem o fim menos nobre, isto é, operar.”) Entretanto, em poucas décadas surgiria a ciência operativa desejada por Francis Bacon e René Descartes, e desde o século XIX existe tecnologia, que aplica concepções científicas em escala industrial. Curiosamente, o valor dos antigos às atividades contemplativas ainda existe, mas de forma inversa. Agora, os saberes operativos – as ciências, sobretudo – ocupam um lugar secundário em relação às artes, ao menos em certos círculos de artistas e intelectuais, e as artes – ou melhor, as obras de arte – oferecem a salvação justamente porque não visam a utilidade, como sugerem expressões como “o espiritual na arte” e os próprios “museus de arte” organizados a partir do final do século XVIII. Não obstante seu declarado materialismo, Richter parece se vincular a essa tradição, como está na nota do post anterior. Em uma nota escrita em 3.1.1988, Richter diz:

Art is the pure realisation of religiosity, of the ability to believe, longing for “God”. All other realisations of this most considerable quality of man are an abuse to the extent that they exploit this quality, in other words make it serve an ideology. Art too becomes “applied art” when it gives up its freedom of purpose, when it wants to communicate something; for it is only in an absolute refusal to make any statement at all that is human. The ability to believe is our most considerable quality, and it is only appropriately realised through art. If, on the other hand, we use an ideology to quench our need for belief, we can only do damage.

Arte é pura realização de religiosidade, da habilidade de acreditar, de desejar “Deus”. Todas as outras realizações desta que é a maior qualidade do homem são errôneas, no sentido de que elas exploram esta qualidade, em outras palavras servem uma ideologia. Arte também torna-se “arte aplicada” quando desiste de sua liberdade de ação, quando quer comunicar alguma coisa; pois ela existe apenas em uma recusa absoluta de fazer qualquer pronunciamento daquilo que é humano. A habilidade para acreditar é nossa maior qualidade, e é apenas apropriadamente realizada através da arte. Se, por outro lado, usamos uma ideologia para saciar nossa necessidade de crença, nós apenas produzimos danos.

A associação entre arte e religião é sugestiva, e em breve escreverei a respeito disso em relação à filosofia. Adianto que no meio filosófico palavras como “pragmatismo” e “positivismo”, entre outras, raramente soam de modo positivo, e parece que no contexto da filosofia acadêmica local ainda se busca saberes “segundo si mesmos”, roubando aqui palavras de Aristóteles.

Seja como for, abaixo está uma da pinturas icônicas de Gerhard Richter, uma espécie de memento mori do final do século XX.

Gerhard Richter. Crânio. Óleo sobre tela, 95 x 90 cm, 1983. Musée d’art moderne Saint Etienne Métropole, Saint Etienne, França.

De Vernant, infelizmente, não tenho o original a minha disposição, e de Aristóteles o texto não está em sua língua original porque o WordPress não aceita caracteres gregos. Eis as referências bibliográficas:

ARISTÓTELES. Metafísica. Livros I, II e III. Tradução, introdução e notas [de] Lucas Angioni. Campinas: IFCH Unicamp, 2008.

VERNANT, J.-P. As origens do pensamento grego. Trad. Ísis Borges B. da Fonseca. Rio de Janeiro: Difel, 2002.

A citação de Varchi vem do segundo volume de suas obras completas, disponível no Internet Archive. De Richter, não tenho os textos originais em alemão para citar, mas sim notas em inglês do catálogo da exposição citada acima, e a série de pinturas de crânios pode ser vista em sua página oficial.

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